Mipam
Jamgön Ju Mipham, ou Ju Mipham Jamyang Namgyal Gyamtso (em tibetano: འཇུ་མི་ཕམ་འཇམ་དབྱངས་རྣམ་རྒྱལ་རྒྱ་མཚོ; mais conhecido como "Rinpoche Mipham" ou também Mipam,[1] na transliteração THL[2]) (1846–1912) foi um filósofo e polímata tibetano muito influente da escola Nyingma, a primeira escola budista no Tibete. Escreveu centenas de livros em mais de 32 volumes sobre temas como pintura, poética, escultura, alquimia, medicina, lógica, filosofia e tantra.[3] As obras de Mipham ainda são centrais para o currículo escolar nos mosteiros nyingma hoje.[4] Mipham também é considerado uma das principais figuras do movimento Ri-me (não sectário) no Tibete.[5] Derivação do nome"Ju" ("segurando") era o nome da família de Mipham, pois seu clã paterno teria se originado como divindades de luz clara que vieram ao mundo humano segurando uma corda. "Jamgön" (sânscrito Mañjunātha) indicam que ele era considerado uma emanação do bodhisattva Mañjuśrī. Seu tio materno, Ministro-Lama Drupchok Pema Tarjay, nomeou-o Mipham Gyamtso ("Oceano Invencível" ou "Oceano Inconquistável").[6] Na literatura tibetana, a palavra "mi-pham" é a tradução padrão do sânscrito "ajita", que significa "invicto",[7] que é um epíteto comum do bodhisattva celestial Maitreya.[8] BiografiaMipam, o Grande, nasceu em uma família aristocrática em 1846 no Principado de Derge de Kham ou Tibete Oriental.[9] Filho de Mukpodongza Singcungma, sua mãe,[10] e seu pai, Gönpo Dargye, era um renomado médico (de quem provavelmente Mipham recebeu algum treinamento em ciências durante sua juventude).[9] Ele foi reconhecido como uma criança excepcional desde tenra idade, memorizando textos desde os seis anos de idade. Aos dez anos já havia composto muitos textos. Aos doze anos, entrou no mosteiro como um monge comum da linhagem Ogmin Urgyen Mindrolling em um mosteiro filial da grande sede nyingma Shechen.[11] Quando ele tinha quinze ou dezesseis anos, depois de estudar o muito difícil sistema Mindrolling de cantar por apenas alguns dias e orar a Manjushri, diz-se que ele o dominou completamente. Em um retiro de 18 meses no Eremitério Junyung,[12] ele realizou a forma de Manjushri conhecida como "Leão dos Filósofos" (em tibetano: smra ba'i seng ge), usando uma liturgia composta pelo décimo quinto Karmapa, Khakhyab Dorje. Ele fez muitas pílulas medicinais abençoadas com o mantra de Manjushri, e muitos sinais milagrosos teriam se manifestado. Depois disso, foi dito que ele poderia realizar qualquer sutra ou tantra sem nenhum esforço, e nenhum texto era desconhecido para ele. Ele foi a muitos lamas para obter os lungs (transmissões orais) necessários, mas não precisava de estudo ou ensinamentos para nenhum texto.[13] Em 1860, um conflito chamado Guerra Nyarong se iniciou com a invasão de Gönpo Namgyal em Derge, o que levou à fuga de Mipham em peregrinação ao Tibete Central, passando algum tempo no monastério guelupa Ganden.[12] Em 1909, mudou-se para o eremitério Tashi Belbarling, onde passou o resto da vida.[12] Em alguns versos aos seus dias finais, ele confessa ter sofrido por 17 anos de uma doença debilitante: uma "grave moléstia dos canais energéticos" que o levou a experimentar "sofrimento intenso e ininterrupto".[9] Mesmo doente, continuou altamente produtivo em seus escritos.[12] Ele foi uma figura incomum entre os eruditos budistas eminentes, pois ao nascer não foi considerado uma reencarnação reconhecida, mas após sua morte surgiram três diferentes alegadas linhagens reencarnatórias, uma de seu corpo, outra de sua fala e outra de sua mente (três vajras).[12] ProfessoresMipham foi "um luminar do renascimento Nyingma do século XIX e do movimento ecumênico Rimê, que começou na região de Kham, no leste do Tibete".[14] Como tal, ele recebeu ensinamentos de mestres de todas as linhagens Nyingma e Sarma. Seus gurus raízes foram Dza Patrul Rinpoche, de quem recebeu instruções sobre o Bodhicharyavatara e Dzogchen de Shantideva, e o renomado mestre Jamyang Khyentse Wangpo, de quem recebeu a transmissão das linhagens transmitidas oralmente, ou Kama, e reveladas ou Terma, e muitos outros ensinamentos. Durante suas viagens, estudou sob vários dos mais influentes professores da linhagem não-sectária, como Jamgön Kongtrul Lodrö Thayé;[12] seus outros mestres foram Dzogchen Khenpo Padma Vajra; Lab Kyabgon Wangchen Gyerab Dorje; Jubon Jigme Dorje; Bumsar Geshe Ngawang Jungne e Ngor Ponlop Jamyang Loter Wangpo.[15] Jamyang Khyentsé Wangpo foi a principal figura do movimento "não sectário" (Rimé) ao final do século XIX no Tibete oriental.[16] Ele especialmente considerava Mipham Rinpoche seu filho espiritual[17] e foi ele quem o incitou a dar uma forma definitiva e perfeitamente coerente à doutrina da escola Nyingmapa.[16] Mipham mostrou-se, na filosofia, o digno continuador de Rongdzom Tchökyi Zangpo e especialmente de Longchenpa (1308–1364), mas também utilizou o pensamento do filósofo indiano Shantarakshita (século VIII) e especialmente do grande pensador sakyapa Gorampa (1429–1489) para articular claramente o Maaiana, em particular o Madhyamaka, com as doutrinas tântricas e Dzogchen dos Nyingmapa.[18] De fato, Stéphane Argullère escreve:
E ele acrescenta:
FilosofiaUm tema-chave no trabalho filosófico de Mipham é a unidade de ideias aparentemente díspares, como dualidade e não-dualidade, sabedoria conceitual e não-conceitual (nirvikalpa), análise racional e meditação não fabricada,[24] presença e ausência, imanência e transcendência, vacuidade e Natureza de Buda.[25] Imitando as escolas sarma, Mipham tentou conciliar a visão do tantra, especialmente Dzogchen, com o sútrico Madiamaca.[26] Isso estava em desacordo com a escola Nyingma, que geralmente posicionava a visão do tantra como superior à visão de Madhyamaka.[26] Mipham rebatia as tradições rangtong da Guelupa e Prasaṅgika do Madiamaca, que consideravam a Realidade Última apenas em absoluta negação (apofatismo) como sendo a Vacuidade em si sem existência hipostática, a qual por sua vez seria também um fenômeno como todos os outros, vazia e meramente objeto mental ou conceitual da linguagem. Ao contrário disso, Mipham afirmava que a Realidade Última como Vacuidade, em sua forma mais alta, não é simplesmente ausência de existência hipostática. Ele define essa última descrição como "realidade última notacional", adotando-a porém como um passo de superação de conceitos parciais extremos para permitir a "realidade última não notacional", como uma realidade livre de todas as fabricações e extremos, acima da existência e não-existência, negação e afirmação, vazio e não-vazio. A isso ele também denominou Grande Coalescência, Grande Caminho do Meio, Caminho do Meio Resultante e Igualdade.[27] Para Mipham, a unidade das visões filosóficas é finalmente resolvida no princípio da coalescência (sânscrito: yuganaddha, tib: zung 'jug), que é a não-dualidade das realidades convencionais e últimas, do samsara e do nirvana.[28] Ao contrário de Tsongkhapa, que sustentou que a vacuidade, como uma negação absoluta, era a realidade e a visão definitivas, Mipham vê a coalescência de gnose e vacuidade, forma e vacuidade, etc., como "a última pedra angular hermenêutica de suas interpretações".[29] Em seus muitos textos, Mipham explora a tensão e a dialética que surge entre o raciocínio filosófico da mente comum (rnam shes) que é representada pela filosofia Madhyamaka e a sabedoria não-conceitual luminosa (ye shes), que é o foco dos ensinamentos do Dzogchen. Ele tenta uma síntese de ambos para mostrar que não são perspectivas incompatíveis e que os ensinamentos do Dzogchen estão de acordo com a razão.[30] Dois modelos das duas verdadesMipham desenvolveu um modelo duplo da doutrina budista das duas verdades. O primeiro modelo é a perspectiva tradicional madiamaca que apresenta as duas verdades da vacuidade e da aparência, com a vacuidade representando o nível da verdade última e a aparência representando a verdade relativa. Neste modelo as duas verdades são realmente a mesma realidade e são apenas conceitualmente distintas.[31] Em seu segundo modelo das duas verdades, Mipham apresenta uma verdade autêntica e uma verdade inautêntica. Experiência autêntica é qualquer percepção que esteja de acordo com a realidade (gnas snang mthun) e percepções que não estão de acordo com a realidade são consideradas inautênticas. Isso difere do primeiro modelo porque no primeiro modelo apenas a vacuidade é última, enquanto no segundo modelo a verdade última é a experiência meditativa da sabedoria unitária. Em vez de ser apenas uma negação, inclui o conteúdo subjetivo da cognição da sabedoria, bem como a natureza objetiva da realidade. Nesse modelo, a verdade última também é a realidade experimentada de forma não conceitual, sem dualidade e reificação, que no Dzogchen é denominada rigpa, enquanto a verdade relativa é a mente conceitual (sems).[32] Segundo Mipham, esses dois modelos não são conflitantes. Eles são apenas diferentes contextualmente; a primeira diz respeito à análise da experiência pós-meditativa e a segunda corresponde à experiência da unidade no equilíbrio meditativo.[33] Esta síntese de Mipam é, em última análise, uma reunião de duas perspectivas diferentes na filosofia tibetana, rangtong e shentong, que Mipam associou aos ensinamentos do segunda giro (sutras Prajnaparamita) e do terceiro giro (Iogachara e sutras da Natureza de Buda), respectivamente:[34]
Para Mipham, ambos os ensinamentos são definitivos e um meio-termo entre ambos é a melhor maneira de evitar os extremos do aniquilacionismo e do essencialismo.[36] Cognição válida quádruplaOutra contribuição original de Mipham é seu sistema de cognição válida quádrupla (pramana) que tem duas cognições convencionais e duas cognições últimas válidas:[37] Cognições válidas convencionais
Cognições válidas últimas
Ele expõe uma hierarquia de vários graus da realidade, correspondendo cada a diferentes cognições subjetivas, como no Mito da Caverna de Platão. Para Mipham, a existência mundana impura apreendida por uma cognição de visão mundana é o nível mais baixo de realidade, uma ilusão; enquanto as aparências captadas por uma cognição de pura visão são objetivamente existentes.[38] CoalescênciaA pedido de seu mestre espiritual Jamyang Khyentse Wangpo, Mipham Rinpoche construiu uma exposição bastante coerente da doutrina Nyingmapa. Para isso, baseou-se na obra de seu ilustre predecessor Longchenpa (1308-1364). Mas ele articulou mais clara e explicitamente as doutrinas do Maaiana com as do Dzogchen. Para isso, inspira-se sempre na obra de Longchenpa, mas vai mais longe e retoma sistematicamente as interpretações filosóficas do mestre sakyapa Gorampa (1429-1489) do Maaiana. Assim diz Stéphane Arguillère:[39]
O pensamento de Mipham Rinpoche é muito hierárquico, com diferentes níveis, cada nível sintetizando e superando os níveis inferiores. Os três níveis principais são: 1) a descrição idealista da verdade relativa da escola Cittamatra, 2) a descrição da verdade absoluta da escola Madhyamaka e 3) a união das duas verdades pelo Dzogchen. Stéphane Arguillère explica, de fato, que para Mipham Rinpoche:[40]
E:
O pensamento de Mipham é, portanto, apresentado em três níveis: 1) Para descrever a verdade relativa (o mundo como o percebemos), Mipham adota a abordagem da escola idealista budista do Cittamatra. Ele adota seu dispositivo em oito consciências: os fenômenos aparecem por autoprodução do espírito, ou seja, aparecem por desdobramento dos traços cármicos (vāsāna) depositados na oitava consciência, a Ālayavijñāna. No entanto, ao contrário do Cittamatra, Mipham nunca manterá a consciência liberta da dualidade sujeito/objeto como intrinsicamente existente. Outra diferença: como Shantarakshita (início do século VIII-783?) e Longchenpa, Mipham afirma que se os fenômenos no estado de vigília são de fato da natureza da mente, não se deve inferir que esses fenômenos sejam idênticos à mente (caso contrário, isso induziria muitas contradições sublinhadas pela Madhyamaka: isso equivaleria a dizer que o mundo que percebemos é exatamente da mesma natureza que os sonhos).[42] Stéphane Arguillère declara, de fato:
A doutrina Cittamatra fornece uma base bem sólida para os ensinamentos "fundamentais" do Buda: as Quatro Nobres Verdades, a originação dependente, a lei do Carma. Estes dois últimos são entendidos como processos internos à consciência. Tomar a abordagem Cittamatra para descrever a verdade relativa é específico para Mipham e Longchenpa. Em particular, este não é o caso da escola tibetana Guelupa (a dos Dalai Lamas) que dominou o Tibete a partir do século XVII. Esta último segue a doutrina de Tsongkhapa (1357-1419), o fundador da Guelupa, que defendia simplesmente a adoção das "visões do mundo" para a verdade relativa.[43] 2) Se Cittamatra é a melhor escola para descrever a verdade relativa, não pode descrever a verdade absoluta que pertence ao Madhyamaka. O Madhyamaka desempenha aqui um papel menos importante do que na escola Gelugpa: serve acima de tudo para eliminar definitivamente qualquer forma de substancialismo (já que para o Madiamaca, nenhum fenômeno sem exceção tem existência intrínseca) em particular no nível da mentação. Ao contrário de Tsongkhapa, Mipham como Gorampa e Longchenpa considera a diferença entre madhyamaka prāsangika e madhyamaka svātantrika puramente pedagógica, embora ele diga que madhyamaka prāsangika é superior a madhyamaka svātantrika. Os madhyamaka svātantrika postulam a existência de fenômenos singulares e individuais dotados de eficiência (ou seja, capazes de agir) como reais no nível relativo e provisório. O que lhes permite, ao postular a existência dos fenômenos dos quais falam, usar a lógica, em particular o silogismo para demonstrar, em última análise, a vacuidade desses fenômenos. Madhyamaka prāsangika se recusa a postular a existência de qualquer fenômeno do ponto de vista relativo e provisório e só usa a refutação de todos os pontos de vista para chegar à vacuidade. Stéphane Arguillere explica:[44]
Há outra diferença entre Mipham e Tsongkhapa e sua escola Gelugpa que é ainda mais importante. De fato, tanto para Mipham como para Longchenpa e Gorampa, se o Madhyamaka é o que conduz ao Absoluto, não pode ser a última palavra sobre o Absoluto. De fato, o Madhyamaka só define o Absoluto de forma negativa: negando tudo o que não é. Mas para Mipham, parar por aí como faz Tsongkhapa é insuficiente por várias razões: não se pode descrever o Absoluto, não se diz nada sobre a faculdade que torna possível experienciar esse Absoluto e, por outro lado, à força de negar tudo, acaba-se como o sofista ou o aniquilacionista em se contradizer, pois se tem que assumir que seu próprio discurso tem um significado, o que exige colocar algo positivo.[45][43] Mais grave ainda, o fato de negar tudo no nível absoluto pode ser compatível com qualquer coisa no nível relativo: como, então, fundamentar os ensinamentos do Buda como a lei do Carma?[43] Mipham estava bem ciente desse dilema que ele expõe em A Joia Opalescente. Neste último livro, Stéphane Argullère explica que:[46]
Este dilema é bem conhecido no Ocidente, onde aparece como o paradoxo de Epimênides ou paradoxo do mentiroso. Foi exposto por Platão na nona hipótese de seu Parmênides e estudado formalmente por Bertrand Russell. Para resolver o dilema, Mipham deve construir um sistema hierárquico de níveis onde ele põe no topo, com o Dzogchen, "a ideia de um Absoluto conhecendo a si mesmo intrinsecamente e, portanto, eternamente".[47]
3) Para Mipham Rinpoche como para Longchenpa, a totalidade do Budismo só assume seu verdadeiro significado ao nível do Dzogchen. Este último é a pedra angular que une e dá sentido a todos os ensinamentos do Buda.[43][48] Em outras palavras, é somente o Dzogchen que dá o significado último e definitivo da iluminação do Buda. Stéphane Arguillère explica a posição de Mipham Rinpoche:
Esse conhecimento baseado em princípios é o que se revela quando a mente conceitual ordinária evapora. Era precisamente o objetivo de Madiamaca desconstruir essa mente comum. Mas ao contrário de Madiamaca e mestres como Tsongkhapa, Mipham Rinpoche seguindo seu modelo Longchenpa não se detém nessa desconstrução e em uma apresentação puramente negativa (onde se nega o que o Absoluto não é) da realidade última. Pelo contrário, e esta é a especificidade da doutrina Nyingmapa fundada por Longchenpa e Mipham, fundamenta toda a abordagem sobre o "fruto" (e não sobre a "base" ou o "caminho" como as outras escolas budistas), isto é, sobre a realização, a visão do Absoluto. Stéphane Argullère o diz explicitamente:[50]
Por outro lado, Mipham tem plena consciência de que a justificação filosófica para a totalidade dos ensinamentos do Buda repousa sobre essa Inteligência primordial, incriada e infinita (Rigpa), contendo todos os fenômenos possíveis em forma não manifestada e cuja totalidade dos fenômenos manifestos são apenas o desdobramento. É ela quem funda todos os níveis inferiores, cada um em seu plano relativo, do Budismo: os ensinamentos fundamentais da primeira roda do Darma (as quatro nobres verdades, a lei do carma), o Cittamatra que explica, ao nível de consciência verdade relativa, a originação dependente e o Madiamaca que conduz à verdade absoluta (vacuidade).[43] Para a descrição do Absoluto, Mipham assumirá plenamente a doutrina de Longchenpa, que se baseia nos textos e práticas do Dzogchen. Mipham irá simplesmente reexpor todos os pontos do pensamento de Longchenpa de uma forma mais sistemática e filosófica, porque o pensamento de Longchenpa é muitas vezes expresso em uma forma principalmente mística e poética e, portanto, é bastante difícil de acessar.[43] Natureza de BudaMipham argumenta a favor da imanência da Natureza de Buda, em sua presença em todos os seres e existindo previamente de forma imutável como causa primordial, pois essa causalidade é necessária para explicar o efeito da expressão final: a realização do Buda. Essa articulação aproxima-se de um panenteísmo, segundo Douglas Duckworth. Em seu comentário ao Uttaratantra, Rugido do Leão: Exposição da Natureza de Buda, Mipham indica tal sobre o búdico Corpo da Verdade:[51]
Em ímpeto de reconciliação, sua teoria do tathāgatagarbha (Natureza de Buda) realiza uma síntese das tendências shentong absolutista da Sakya e rangtong da Guelupa, em um caminho do meio em que o tathāgatagarbha é ultimamente vazio em seu próprio ser, mas convencionalmente dotado de todas as qualidades de Buda.[52] CompaixãoBaseado em sutras, tantras e pensadores anteriores, como Maitreya-natha, Mipham exorta a realização de uma "virada" cognitiva, com mudança de atitude psíquica e visão voltada à compaixão:[53]
PaixãoMipham tornou-se o primeiro autor do Tibete a escrever sobre kāmaśāstra,[54] sendo seu tratado desse gênero, "Tratado da Paixão: Tesouro que Agrada o Mundo Inteiro" (’Dod pa’i bstan bcos ’jig rten kun tu dga’ ba’i gter), o mais antigo restante em língua tibetana. Devido à tendência eclética e enciclopédica de budistas do século XIX, da qual Mipam e seus mestres participaram, de se abordar antigos textos de outras vertentes com um caráter não enviesado, ele retoma o tema secular da sexualidade como vista na literatura erótica indiana, mas se diferencia, porém, ao inseri-la na soteriologia budista tântrica de se converter o prazer em beatitude como meio para sabedoria e libertação (moksha): "sem paixão não há libertação completa".[55]
Levando em conta o duplo aspecto secular e religioso do paixão, Mipam considera seu tratado do assunto como sendo superior: "possui o sabor de toda a alegria na terra e o tesouro da realização iogue". Ele assim afirma sua intenção:[55]
PolíticaMipham escreveu Um Tratado sobre Ética para Reis: Um Ornamento para Governantes em 1895, o que talvez seja o mais extenso tratado pré-moderno sobre o tema de realeza budista e ética política. Com o objetivo não apenas de servir de instrução a um monarca budista, ele apresenta na obra a intenção de ensinar o "Darma dos reis" a todas as pessoas, inclusive aquelas sem sangue real, como prática de autocultivo: "Quando alguém treina sua mente para cuidar dos seres vivos, ele eventualmente se torna um rei do Darma". Ele defende que o rei deve realizar um programa de formação intelectual e moral budista para que se torne um governante justo. Esse sistema de ética política segue um modelo de cima para baixo similar ao de Platão, na teoria de "gotejamento" do Estado justo.[9] Obra e legadoComo observa o estudioso Robert Mayer, Mipham "revolucionou completamente a escolástica rNying ma pa no final do século XIX, elevando seu status, depois de muitos séculos como um atraso intelectual comparativo, à, sem dúvida, a mais dinâmica e expansiva das tradições filosóficas em todo o budismo tibetano, com um influência e impacto muito além dos próprios rNying ma pa."[56] AlcanceNa introdução ao seu estudo crítico dos debates ontológicos entre Mipham e seus oponentes Gelugpa (Dialética de Mipham e os Debates sobre Vacuidade), Lopen Karma Phuntsho define Mipham como um polímata e dá esta avaliação do escopo do trabalho de Mipham:[14]
Sua obra consiste de centenas de livros, compilados por discípulos e reproduzidos em 1987 pelo mosteiro Zhechen em 27 volumes.[54] O Buddhist Digital Resource Center lista mais de 200 obras registradas em cerca de 30 volumes,[57] mas há cerca de 320 títulos ao total.[9] Ele escreveu mais do que quase qualquer outro autor tibetano.[57] Dois terços desses escritos são filosóficos, abrangendo tópicos de ontologia, epistemologia, lógica e metafísica, e de soteriologia, monasticismo, doxografia e misticismo budista. Inclui também tratados de linguagem, desde gramática elementar, e de poesia, arte, medicina, geometria, adivinhação, magia, danças, além de hinários, epístolas homiléticas, orações, canções e sátira. Devido ao seu zelo por cultura popular, etnografia e antiguidade, é considerado por Karma Phuntsho um antropólogo e antiquário, por ter promovido e compilado rituais folclóricos (sua coleção gTo sgrom 'bum tig) e sobre, por exemplo, o sortilégio de nós ('Ju thig), que estava morrendo entre os bonpos.[58] Em seu gZo gnas nyer mkho 'i za ma tog, escreveu sobre várias artes, como grafologia, caligrafia, pintura, escultura, metalurgia, carpintaria, cerâmica, joalheria, costura, feitio de relíquias religiosas, incenso, pílulas herbais e tintas.[58] Sogyal Rinpoché escreveu sobre ele:
Mipham Rinpoche teve toda a sua vida um grande fascínio pela Epopeia do Rei Gesar, que é o mais importante poema épico das populações tibetanas provavelmente escrito no século XII.[60] Gesar de Ling é considerado no Tibete como a encarnação de Padmasambhava e o símbolo do guerreiro espiritual.[61] Mip'am Rinpoche coletou muitas tradições sobre Gesar e contribuiu para a difusão de sua adoração. Ele compôs muitas orações a respeito dele que ainda são usadas com muita frequência hoje na escola Nyingmapa.[62] Seus escritos sobre Madhyamaka e outros tópicos formaram a base da educação monástica nyingmapa, cujo currículo é dominante em monastérios nyingma atualmente.[63] Os trabalhos de Mipham sobre os ensinamentos exotéricos ou Sutrayana e os ensinamentos esotéricos ou Vajrayana tornaram-se textos centrais dentro da tradição Nyingma. Esses trabalhos agora ocupam uma posição central no currículo de todos os mosteiros e colégios monásticos Nyingma–ocupando um lugar de estima semelhante aos trabalhos de Sakya Pandita e Gorampa na tradição Sakya; os de Tsongkhapa na tradição Gelug e de Kunkhyen Padma Karpo no Drukpa Kagyu. Juntamente com Rongzompa e Longchenpa, Mipham é considerado um dos três escritores "oniscientes" da tradição Nyingma.[13] Comentários sobre Śāstra budistaEmbora Mipham tenha escrito sobre uma ampla gama de assuntos, o professor David Germano identifica o aspecto mais influente da carreira de Mipham em que ele "foi o autor mais importante na eflorescência da literatura exotérica nyingma nos séculos XIX e XX. Baseando-se teoricamente nos escritos de Longchenpa e outros grandes autores nyingma, Mipham produziu brilhantes comentários exegéticos sobre os grandes sistemas filosóficos indianos e textos com orientação nyingma".[64] E. Gene Smith também julgou que a maior contribuição de Mipham estava "em seus comentários brilhantes e surpreendentemente originais sobre os tratados indianos". Antes de Mipham, os estudiosos nyingmapa "raramente escreviam comentários pedagógicos detalhados sobre os śāstras do budismo exotérico". Até sua época, as faculdades ou shedras associadas aos grandes mosteiros Nyingma de Kham, como Dzogchen, Shechen, Kathog, Palyul e Tarthang, não tinham seus próprios comentários exegéticos sobre esses śāstras maaianas exotéricos, e os estudantes geralmente estudavam comentários gelug sobre esses textos fundamentais. Baseando-se nos escritos de Śāntarakṣita, Rongzom Chokyi Zangpo e Longchenpa, Mipham produziu uma série de brilhantes comentários exegéticos sobre os grandes sistemas e textos filosóficos indianos que claramente articularam uma orientação ou visão Nyingma.[65] Os textos incluem seus comentários sobre o Mulamadhyamakakarika ou Estâncias Fundamentais sobre Sabedoria de Nagarjuna; a Introdução ao Caminho do Meio (sânscrito: Madhyamakāvatāra) de Chandrakirti; a Quintessência de Todos os Cursos de Sabedoria Suprema (Jnanasarasamuccaya) de Aryadeva; comentários sobre as principais obras dos lógicos budistas indianos Dharmakirti e Dignaga; comentários sobre os Cinco Tratados de Maitreya mais notavelmente, o Abhisamayalamkara; comentários sobre várias obras de Vasubandhu, incluindo o Abhidharmakosha.[13][66] O comentário de Mipham sobre o nono capítulo do Bodhicaryavatara de Shantideva, o Shertik Norbu Ketaka (em em tibetano: ཤེར་ཊཱིཀ་ནོར་བུ་ཀེ་ཏ་ཀ་; Wylie: sher ṭīk nor bu ke ta ka),[67] "lançou os círculos acadêmicos tibetanos em várias décadas de controvérsia acalorada", mas "não foi a única tempestade que as novas exposições de Mipham levantaram".[65] Seu comentário sobre o Madhyamakalamkara de Śāntarakṣita também foi considerado altamente controverso.[68] Comentários sobre TantrasO comentário de Mipham sobre o Guhyagarbha Tantra é intitulado A Essência da Luz Clara ou Núcleo da Radiância Interna (em tibetano: Wylie: od gsal snying po)—ele é baseado no comentário de Longchenpa, Dissipando a Escuridão nas Dez Direções (em tibetano: Wylie: gsang snying 'grel pa phyogs bcu mun sel), o qual explica o Guhyagarbha do ponto de vista do Dzogchen.[69][70] Mipham mostrou interesse particular no Calachacra e no reino de Shambhala, e um de seus últimos e mais extensos trabalhos esotéricos são seus dois volumes de comentários, iniciação e sadhana relacionados ao Kalachakra Tantra, o ensinamento esotérico de Shambhala.[71] Antes de morrer em 1912, ele disse a seus alunos que agora estava indo para Shambhala.[72] GesarAo longo de sua vida, Mipham mostrou um interesse particular pela lenda do rei guerreiro Gesar de Ling, uma figura do século XII cujo épico é bem conhecido e amplamente celebrado no leste do Tibete, e sobre o qual Mipham escreveu extensivamente. A prática Gesar conhecida como "A Rápida Realização da Atividade Iluminada por Invocação e Oferenda" (em tibetano: Wylie: gsol mchod phrin las myur 'grub), popularmente Söllo Chenmo, surgiu na mente de Mipham como um gong-ter e foi escrito ao longo de três anos, dos 31 aos 34 anos (1877 a 1880). Esta prática invoca Gesar e sua comitiva e pede que ele ajude os praticantes.[62][73] MedicinaOs trabalhos de medicina tibetana de Mipham continuam a ser altamente considerados até hoje.[74] Astrologia e adivinhaçãoMipham também escreveu extensivamente sobre astrologia que era, em suas palavras, um "jogo delicioso" que ele dominou na adolescência, mas depois aplicou a tópicos mais sérios, como medicina; esses dois tópicos, com vários textos sobre tópicos mais ou menos relacionados à adivinhação, ocupam talvez 2.000 páginas de sua escrita. Um volume inteiro de Mipham é dedicado ao Ju-thig ou adivinhação usando nós, um método que pode ser chamado de "Bon" na origem, na falta de um termo mais preciso; esse pode ter sido o legado de sua família, que foi médica por várias gerações. Ao longo de seus escritos há muitos recursos para adivinhação, além da astrologia, incluindo vários rituais para olhar em espelhos (pra-mo), um usando dados (mo), puxar 'flechas' (da dar) de diferentes comprimentos de uma aljava e assim por diante, obrigar um "pássaro" não humano a sussurrar notícias futuras no ouvido de alguém, e assim por diante. Em um pequeno texto, ele prescreve vários métodos de adivinhação (todos extraídos, enfatiza Mipham, de escrituras e comentários tântricos) que fazem uso de fontes incomuns de augúrio, tais como: a conversa ouvida vicariamente das mulheres; aparecimento súbito de vários animais, especialmente pássaros; fenômenos climáticos; a forma, tamanho e cor das chamas no agnihotra ou puja do fogo; a qualidade das lamparinas de manteiga acesa, principalmente o tamanho da chama, a quantidade e o formato da fumaça que surge; e o tamanho e a forma do depósito de carbono no pavio.[carece de fontes] Quando alguns de seus rivais acadêmicos acharam inapropriado para um monge dedicar tanto tempo a assuntos de eventos futuros, Mipham escreveu um pequeno ensaio explicando o propósito da adivinhação, citando fontes nos Sutras e Tantras onde a utilidade e o valor da adivinhação são explicados.[carece de fontes] AlunosEle teve muitos discípulos, incluindo Jigmé Tenpé Nyima e Tertön Sogyal.[75] Outros dentre os alunos mais importantes de Mipham foram Dodrub Rinpoche, o Quinto Dzogchen Rinpoche, Gemang Kyab Gon, Khenpo Padmavajra, Katog Situ Rinpoche, Sechen Rabjam, Gyaltsab Tulku, Palyul Gyaltrul, Karma Yangtrul, Palpung Situ Rinpoche, Ling Jetrung, Adzom Drukpa (1842-1924), Togdan Shakya Shri, Ngor Ponlob e outros. Os grandes tulkus de Sechen, Dzogchen, Katog, Palyul, Palpung, Dege Gonchen, Repkong e outros de todas as linhagens, Sakya, Gelug, Kagyu e Nyingma, todos se tornaram seus discípulos.[carece de fontes] Emanações de Ju MiphamDe acordo com um relato pouco antes de morrer, Mipham disse ao seu assistente:
Isso pode ser interpretado como uma afirmação de que seu fluxo mental não teria mais 'emanações' (Wylie: sprul pa (corpo de emanação); sprul sku (tulku)). Por outro lado, de acordo com outro relato no qual ele menciona o fluxo mental de passagem e profetiza pouco antes de sua morte para seu aluno Khenpo Kunphel:
No relato acima, logo após a partida de Khenpo Kunphel, ele declarou publicamente: "Agora, em breve partirei. Não renascerei novamente no Tibete, portanto, não me procure. Tenho motivos para ir a Shambhala no norte".[77] Posteriormente no último século, uma série de emanações foram alegadamente reconhecidas em alguns indivíduos que foram identificados como reencarnações de Mipham, segundo Douglas Duckworth.[9] De acordo com E. Gene Smith, "Pelo menos três renascimentos foram reconhecidos na década seguinte à sua morte: 1) Zhe chen Mi pham (um sobrinho-neto de Mi pham rgya mtsho); 2) Tshe dbang bdud 'dul (1915/16-42) o último príncipe de Sde dge; 3. Khyung po Mi pham, uma encarnação reconhecida por Rdzong gsar Mkhyen brtse 'Jam dbyangs chos kyi blo gros".[78] O próximo (terceiro) Mipham na linha do Príncipe Dege que morreu em 1942 aparentemente nasceu no Tibete em 1949 e reconhecido por Tengye Rinpoche do Lab i em 1959. Naquela época, ele foi entronizado e responsável por todos os mosteiros anteriormente mantidos pela primeira e segunda encarnações. Esta terceira encarnação também foi confirmada por Patrul Rinpoche que lhe deu relíquias das encarnações anteriores e por Dilgo Khyentse Rinpoche, que ele havia reconhecido em uma encarnação anterior. Este Mipham encarnado é o pai de Thaye Dorje, um dos dois candidatos a ser reconhecido como o 17º Karmapa, e do 14º Sonam Tsemo Rinpoche, um importante Tulku Gelug/Sakya.[79] Ver tambémReferências
Bibliografia
Traduções em inglêsPara um excelente guia de suas obras em inglês, veja o artigo da Série Great Masters da Shambhala Publications
Leitura adicional
Ligações externas
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