Revolta de Beja

A denominada Revolta de Beja foi uma ação de luta contra a ditadura de António de Oliveira Salazar, em Portugal. A também denominada de Intentona do RI3, ou "o Caso de Beja" teve lugar na noite da passagem de ano de 31 de dezembro de 1961 para 1 de janeiro de 1962, e tratou-se de uma tentativa de golpe civil e militar que pretendia derrubar o regime a partir da tomada de assalto do Regimento de Infantaria N.º 3 naquela cidade alentejana.[1][2]

Antecedentes

O ano de 1961 tinha sido o de todas as calamidades para a ditadura e de muita esperança para a democracia. Em janeiro o capitão Henrique Galvão sequestrara o navio Santa Maria. O Governo estava isolado; caíram Goa, Damão e Diu; foram lançados panfletos sobre Lisboa, de um avião desviado por Palma Inácio; Daomé ocupou o Forte de S. João Baptista de Ajudá, fortificação que representava a presença histórica portuguesa naquela região africana. Havia, pois, razões para crer no fim da ditadura Salazarista. Por motivos conjunturais, o Quartel de Beja estava na rota da conquista da Liberdade, do fim do Estado Novo.

Protagonistas

No seguimento da derrota eleitoral de Humberto Delgado nas eleições presidenciais de 1958 presumivelmente por fraude, a oposição radicaliza-se. Indo para o exílio, Humberto Delgado irá apoiar várias iniciativas. No caso de Beja, João Varela Gomes toma a liderança militar, Manuel Serra a liderança civil. Fernando Piteira Santos fará a ligação entre civis e militares.[3]

Ação

Na noite de passagem de ano de 1961 para 1962, João Varela Gomes avança para Beja para, juntamente com outros companheiros, tomar de assalto o quartel. O assalto que Varela Gomes e Manuel Serra dirigiram tinha na preparação Humberto Delgado, que havia entrado em Portugal clandestinamente com o intuito de comandar a ação e que inclusive, tinha estado em Beja, ainda que afastado do ocorrido.

Por volta das 2h15m da madrugada, ao comando de Varela Gomes, cerca de 50 homens e uma mulher[nota 1] entram no Quartel de Beja. Contam com a conivência de três oficiais no interior do quartel, que lhes abrem as portas, anulando-se de seguida os sentinelas e trancando-se demais defensores nas casernas.[nota 2] Dirigem-se então alguns homens ao quarto do 2º Comandante Henrique Calapez da Silva Martins, que estava de sobreaviso devido a rumores antecipatórios sobre o golpe, e assim fardado na cama. Ter-se-ão tentado passar por Rocha, sargento da guarda imobilizado pelos revoltosos. Rocha teria um sotaque marcado alentejano que Varela Gomes, lisboeta, falhou em replicar. Assim que Henrique Calapez Martins abriu a porta do quarto é alvejado no tórax[nota 3]. Ripostando quase em simultâneo com a sua pistola-metralhadora m/915 ‘Savage’[4], atinge Varela Gomes no baço.[nota 4] Calapez escapa do quarto e percorre o quartel em senda de uma saída. Seguem-se trocas de tiros, durante cerca de uma hora, até que o Major Henrique Calapez consegue sair e fazer rumo ao posto da Guarda Nacional Republicana (GNR).

Informa e intima a GNR a agir, mas o comandante, Capitão Camilo Delgado[5][nota 5], hesita; incerto da força atacante, tenta antes obter reforços.[nota 6] Quando se fez dia, os fiéis ao regime[nota 7] avançam sobre os revoltosos e retomam o controlo do quartel, prendendo os insurrectos que ainda no local se encontravam.[7]

A cerca das 6h30m, sob a chuva torrencial, Jaime Filipe da Fonseca é um de dois homens à paisana que se aproximam a pé da porta do quartel. O vulto de da Fonseca é então atingido por "fogo amigo" dos nervosos sitiantes, a partir de uma torre, vindo o Tenente-Coronel de Cavalaria e Subsecretário de Estado do Exército a sucumbir aos ferimentos.[nota 8][8][9][10] A PIDE prendeu o capitão Eugénio de Oliveira e os outros implicados, civis e militares, enquanto era vexada pela fuga bem sucedida do general Humberto Delgado.[11]

Do lado dos revoltosos, morrem David Abreu e António Vilar às mãos de Calapez, sendo ainda ferido Raul Zagalo, a par do já mencionado Varela Gomes, que viria a ser múltiplas vezes operado, inicialmente no Hospital de Beja, sob sigilo do Estado.[nota 9][12][13][14]

No hospital, segundo o regime, Varela terá questionado "É forte o tiroteio na cidade?", o que seria utilizado pela propaganda como evidência que se tencionava de seguida "envolver a cidade em forte tiroteio". A ditadura, numa esforço de colocar "o caso de Beja integrado na (...) conjura que feriu de morte (...) Goa, Damão e Diu", declararia também que os revoltosos teriam dado vivas a Nehru (autor da tomada da Índia portuguesa), aquando a tomada do quartel, como demonstra do seu "anti-patriotismo".[15]

Implicações

O regime hesita nos primeiros dias em tornar oficial uma narrativa coesa sobre os detalhes dos acontecimentos, e na Assembleia Nacional, a 3 de janeiro de 1962, o seu presidente Mário de Figueiredo não permite que se façam comentários aos acontecimentos de Beja, "por não poder haver" "período de antes da ordem", ficando apenas declarado um voto de pesar pela morte do Subsecretário[16]. Supervenientemente, o regime irá criar várias cerimónias de celebração à derrota da intentona, condecorando os seus protagonistas pelo regime, como Calapez, Alves Ribeiro e Jaime da Fonseca.[17][18][19][20]

Foram muitos os que acreditaram que a Revolução poderia ter começado com este episódio. Mais tarde, em 1987, por ocasião da Presidência Aberta ‘Alentejo Verde’, Mário Soares, à chegada a Beja, diria: «se não fosse um tal de major Calapez, o 25 de Abril teria sido 15 anos antes».

Ver também

Fontes

Notas

  1. A enfermeira Mariana Esteves.
  2. Estando uma forte tempestade que abafaria o som do avanço, até dos tiros. Varela Gomes já teria dado um disparo acidental ao passar o muro, que os defensores aparentemente não teriam ouvido.
  3. Um disparo acidental, ou em resposta a um ataque inicial de Calapez, nas versões dos revoltosos.
  4. Na versão dos revoltosos, terá sido então neutralizado, mas depois escapado pela janela e retomado a defesa.
  5. João Camilo José Delgado teria participado no processo policial que veria o seu colega tenente João Tomaz Carrajola, da GNR, exonerado pela execução de Catarina Eufémia, protestante camponesa de Baleizão que liderara um grupo de 14 ceifeiras a exigir o aumento de mais dois escudos por jorna diária.[6]
  6. Apesar do regime declarar que teria agido "imediatamente", com "corajosa valentia, cheia do maior desprezo pela [própria] vida".
  7. A GNR, auxiliada pela PIDE e mais tarde pelos Regimento de Infantaria de Évora (N.º 16), Regimento de Cavalaria de Estremoz (N.º 3), e Batalhão de Caçadores Especiais
  8. Uma fonte tardia, dos revolucionários, indica que terá sido o próprio Calapez a atingir o Jaime da Fonseca. Outras, incluindo o capitão da GNR Alves Ribeiro que acompanharia Jaime, que, sendo de facto "fogo amigo", veio da Guarda Nacional Republicana, o que viria a ser admitido em tribunal por Manuel Stedlin Baptista, coronel 1.º Comandante do Regimento de Infantaria n.º3, por pressão de Cunha Leal. Da Fonseca, veterano da Guerra Civil espanhola pelos fascistas, receberia condecoração póstuma "pela coragem" "contra os insurrectos".
  9. No julgamento, o ministério público do Estado Novo lamenta a impossibilidade de aplicar pena de morte aos revoltosos. Então, seria aplicável a pena de morte a militares, mas apenas no contexto de guerra com outro país.

Referências

  1. Teixeira Correia (31 de dezembro de 2011). «Beja: Passam 50 anos do assalto ao quartel». Beja: Rádio Voz da Planície. Consultado em 23 de maio de 2016 
  2. Mário Ramires (9 de outubro de 2010). «Política : A verdade do assalto ao quartel de Beja 50 anos depois». Semanário Sol. Consultado em 23 de maio de 2016 
  3. Exposição FERNANDO PITEIRA SANTOS_PORTUGUÊS, CIDADÃO DO SÉCULO XX uma pátria é um território cultural (PDF). [S.l.: s.n.] 
  4. REGALADO, Jaime Ferreira (2015). Pistola 7,65 mm m/915 SAVAGE. [S.l.]: Fronteira do Caos. ISBN 978-989-8647-46-7. Resumo divulgativo 
  5. «Debates Parlamentares - Diário 011, p. 265 (1962-01-05)». debates.parlamento.pt. Consultado em 25 de novembro de 2024 
  6. «Diário do Alentejo». Diário do Alentejo (n.º1539). 23 de outubro de 2015 
  7. Ramires 2010.
  8. ALVES, Jofre de Lima Monteiro (14 de janeiro de 2012). «REVOLTA DE BEJA: O Assalto ao Quartel de Infantaria» (PDF). Figueiró dos Vinhos. Jornal A Comarca. 2ª (379): 12 
  9. «MEMÓRIA DO INSTITUTO DA DEFESA NACIONAL» (PDF). p. 118 
  10. «Proposta de condecoração a Jaime Filipe da Fonseca (Tenente-Coronel de Cavalaria; Subsecretário de Estado do Exército)». Janeiro de 1962 
  11. https://www.rtp.pt/noticias/politica/morreu-varela-gomes-figura-historica-da-resistencia-a-ditadura_n880941
  12. «MEMÓRIA DO INSTITUTO DA DEFESA NACIONAL» (PDF). p. 118 
  13. «Proposta de condecoração a Jaime Filipe da Fonseca (Tenente-Coronel de Cavalaria; Subsecretário de Estado do Exército)». Janeiro de 1962 
  14. ZAGALO, Raul; ROSA, Gonçalo Pereira (7 de agosto de 2023). «Testemunhos da História – Sessenta anos após a revolta de Beja - Nº 1760». Seara Nova. Consultado em 19 de novembro de 2024 
  15. SOARES, António de Castro e Brito Meneses. «Debates Parlamentares - Diário 011, p. 265 (1962-01-05)». debates.parlamento.pt. Consultado em 25 de novembro de 2024 
  16. «Debates Parlamentares - Diário 009, p. 239 (1962-01-03)». debates.parlamento.pt. Consultado em 25 de novembro de 2024 
  17. Vasques, Francisco Lopes. «Debates Parlamentares - Diário 039, p. 863 (1962-02-27)». debates.parlamento.pt. Consultado em 25 de novembro de 2024 
  18. CASTILHO, José Manuel Tavares. «FRANCISCO LOPES VASQUES - Biografia» (PDF) 
  19. «Alberto Alves Ribeiro Ordem Militar de Avis, Grau de Oficial com Decreto de 20 de novembro de 1961» 
  20. «Alberto Alves Ribeiro - Grau de Cavaleiro da Ordem Militar de Cristo» 
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