Língua panará
O Panará (kre = código ISO 639-3 correspondente),[1] também denominado Krenhakarore, Krenakore, Krenakarore e Kreen-akarore,[2][3] é uma língua indígena do Brasil atualmente falada nos estados do Mato Grosso e sul do Pará, mais precisamente na Terra Indígena Panará (Guarantã do Norte em MT e Altamira PA), que se encontra nos entornos do Rio Peixoto de Azevedo e nascente do Rio Iriri.[4][5] Atualmente, a língua possui 380 falantes de uma população étnica de 540.[1] Segundo esses números, o Panará se encontra em situação vulnerável, ou seja, a maioria das crianças fala a língua, porém isso pode estar restrito a determinados ambientes.[3] De acordo com outra escala, a Escala de Ameaça Aglomerada (Agglomerated Endangerment Scale - AES), ela está na categoria de mutação (shifting), que é quando a geração em idade fértil possui conhecimento suficiente na língua para usar entre si, mas não transmite às suas crianças.[5][6][7] É devido a isso que oficinas e estudos vêm sendo feitos com professores locais para padronizar a gramática da língua e impedi-la de cair em desuso. O nome ‘Panará’, auto-denominação da própria comunidade, significa ‘gente’ nessa língua - algo provavelmente derivado das palavras 'panariá' (indígena) e 'puará' (homem).[4][8] Suas outras nomenclaturas comuns derivam de atribuições dos Kayapó ao povo Panará, que significam “cabeça cortada redonda”.[8] Isso se relaciona ao modelo tradicional de corte de cabelo deles, o qual é um elemento fenotípico de extremo valor na cultura dos Panará. Seu corte se associa a um determinado status social. ClassificaçãoA língua pertence ao tronco linguístico Macro-Jê, um dos principais troncos das línguas indígenas brasileiras. Pertence ainda à família Jê e subfamília Jê Setentrional[2] junto com línguas como Apinayé, Kayapó, Suyá e as línguas Timbira.[5][9][10] Há muitos indícios de que a língua surgiu como uma variante do Kayapó do Sul, observados majoritariamente na ortografia e fonética semelhantes.[8]
FonologiaO Panará possui um extenso inventário fonético no qual predominam vogais em relação às consoantes.[10][11][12] ConsoantesAs consoantes do Panará são muito semelhantes às do português, com exceção dos fonemas padronizados /ɲ/ e /ŋ/ e dos fonemas de mais de um ponto de articulação. É importante notar também que, no Panará, quando consoantes nasais precedem uma vogal oral, ou uma consoante aproximante, elas são pós-oralizadas e desvozeadas. Além disso, a fricativa glotal [</>h] não é considerada mais fonêmica, sendo distribuída na ortografia de acordo com a prosódia.
VogaisNessa língua, as vogais podem ser divididas entre orais e nasais, curtas e longas. A nasalidade, de modo igual ao da língua portuguesa, é indicada pelo sinal diacrítico da tilde (ou til). Já a distinção entre curtas e longas ocorre pelo suprassegmento longo [ː], indicado por dois pontos triangulares. As vogais /oː, ɔː, õː, eː, ẽː/ são foneticamente compreendidas com ditongação, respectivamente como [ow, ɔw, õw̃, ej, ẽj̃ ]. Exemplo: /poː/ [pow] (chegar) Ademais, na língua ocorre também a redução de vogais abertas: a vogal /a/ pode ser reduzida a [ɐ] ou [ə] em sílabas átonas.
EpênteseA epêntese está presente em muitas palavras que iniciam ou terminam com [i] no Panará. O [i] final epentético só ocorre em palavras com codas oclusivas → /tɛp/ → [ˈtɛːpi] ‘peixe’. Já o [i] inicial epentético pode ser obrigatório, opcional ou antigramatical em dependência da raiz da palavra. A tabela a seguir indica o uso deste, em que [T] se refere a uma consoante oclusiva, [CC] se refere a uma consoante geminada e [NT] a uma consoante nasal em caso de pós-oralização, como [m͡p, n͡t, n͡s, ŋ͡k]:[12]
EscritaA ortografia para o Panará tem sido desenvolvida nos últimos 20 anos pela própria comunidade - em especial pelos Panará formados como professores que trabalham nas escolas locais - com o auxílio de workshops de alfabetização propostos tanto por organizações não-governamentais quanto pelo governo brasileiro.[10] Eles utilizam o alfabeto latino, porém as letras b, c, d, f, g, l, q, v, x e z não são empregadas. A letra y é considerada uma vogal, e possui pronúncia diferente da consoante y no português. Uma outra distinção significativa entre a língua portuguesa e o Panará é que os fonemas nasais no último são grafados com o sinal diacrítico tilde, e não possuem a alternativa de serem seguidos por consoantes nasais. Exemplo: [ĩ] que é grafado como ‘ĩ’ no Panará, mas é representada por ‘im’ ou ‘in’ no português. O tamanho das vogais é fonêmico, assim como sua nasalização, e é representado pelo dígrafo da vogal. Quanto às consoantes, a pós-oralização nasal é representada por um dígrafo, nasais codais são representadas por n, e geminadas - antes representadas por uma pausa glotal - são agora representadas por um dígrafo. Por último, nas combinações fonéticas [m͡p, n͡t, n͡s, ŋ͡k], as consoantes nasais são representadas pela letra n.[11]
MorfossintaxeNomesPronomes pessoaisNo Panará, os pronomes pessoais podem ser divididos entre pronomes pessoais livres e pronomes pessoais clíticos. Os pronomes pessoais livres apresentam uma base única para o singular, à qual se agregam sufixos para formar o dual, o plural e o paucal (este apenas na terceira pessoa).[10] O panará é uma língua dativa e instrumental-comitativa, ou seja, também difere casos de quem se beneficia/ prejudica com a ação e o instrumento ou companhia de quem executou a ação. Enquanto ações direcionadas no português são dadas por verbos pronominais, sem distinção de casos, e a partícula ‘com’ no português indica tanto instrumento como companhia, nessa língua o pronome já indica cada situação. Exemplo de benefactivo:
‘eu’, no caso, é benefactivo pois se beneficia com a ação. No português, é representado por ‘me’ para indicar direcionamento da ação, para quem foi feita, sem nenhum juízo de valor, pois não é uma língua dativa. Os pronomes se diferem então no caso *absolutivo-ergativo, dativo (benefactivo-malefactivo; quem se beneficia/prejudica com a ação) e instrumental-comitativo (instrumental se refere a instrumento ou meio pelo qual o sujeito realiza a ação, comitativo se refere à companhia com a qual o sujeito exerceu a ação). Com exceção do caso absolutivo, que é não-marcado, os outros casos são seguidos de posposições,[13] as quais indicam sua função. Pronomes livres não podem ocupar a posição de objeto indireto locativo.
No alinhamento absolutivo-ergativo, o sujeito da intransitiva declina da mesma forma que o objeto direto (absolutivo) e o sujeito da transitiva declina sozinho (ergativo). Como esse alinhamento difere do da língua portuguesa, foi feita uma adaptação da tradução para seguir o padrão. Nos casos ergativo e benefactivo não-singular há a nasalização da última vogal do pronome ao invés da posposição. Ambos aparecem com função de sujeito de verbo transitivo ou intransitivo; pa é derivado do homônimo ‘gente’ e pode se referir a ‘ele(s)’, já mĩ majoritariamente ocorre como exortativo (estimulante). Os pronomes clíticos, por sua vez, possuem uma distribuição divergente da dos pronomes livres. Predominantemente, ocorrem de modo individual (sem a presença de nomes ou pronomes livres), como argumento do verbo; todavia, podem também co-ocorrer com os pronomes livres, com função anafórica. É argumentado que possam ser tratados como clíticos de co-referência aos argumentos nucleares (sujeito, objeto direto e objeto indireto), pois possuem um comportamento muitas vezes ambíguo como argumento pronominal vs. marcador de concordância.[10] Existem quatro formas de clíticos pronominais, que ocorrem sempre à esquerda da raiz do verbo, podendo ser co-referentes nos seguintes casos:
Flexão de númeroNomes que se referem a coisas animadas no Panará admitem flexão de número dual, plural e paucal (indica um grupo pequeno, de 3 a 10 componentes). Coisas inanimadas geralmente são seguidas de numerais. Enquanto o singular é não-marcado, a flexão das demais formas se manifesta nos pronomes independentes e nos proclíticos e prefixos juntos ao verbo. Exemplo de prefixo verbal:
Os sufixos obrigatórios aos pronomes livres de número dual -ra ou -na, de número plural -mɛra ou -mera, são opcionais nos nomes. O paucal -pyyra só se anexa aos pronomes livres ou demonstrativos. Exemplos:
Relação de posseAs relações de posse no Panará estabelecem uma distinção de forma e sentido entre a posse alienável, ou seja, quando o item possuído se liga ao possuidor de maneira efêmera, e posse inalienável, que é quando o item possuído se liga ao possuidor de forma necessária. Para além dessa distinção, distingue-se também a posse inerente da não-inerente para os nomes. Tal relação pode ser expressa de três formas: por meio de nomes, por justaposição e por orações possessivas. Na língua, nem todos os nomes podem ser gramaticalmente possuídos - de exemplo, nomes próprios e elementos da natureza (terra, rios, cachoeira, céu, etc.).[10][14] Sintagmas nominais possessivosNos sintagmas nominais possessivos indicativos de posse inalienável, os nomes que se referem ao possuidor e ao possuído se encontram justapostos, com núcleo (possuído) à direita.[15] Casos de parte em relação a um todo incluem-se aqui:
Quando se trata de posse alienável, a posse é expressa por meio de nomes cujo sentido remete à função de indicar propriedade. a) O nome -õ, precedido pelos sufixos relacionais s- e y- que marcam, respectivamente, não-contiguidade (RNC) e contiguidade (RC) com o nome referente ao possuidor. Yõ ocorre sempre à direita imediata do possuidor; sõ ocorre como aposto, precedendo o possuído na função de complemento ou adjunto adverbial:
Sõ também pode ser seguido por sakiama, que denota 'próprio, mesmo’, um nominal resumptivo do possuidor. b) O nome -ĩ é, da mesma maneira, marcado pelos prefixos relacionais s- e y-. A forma yĩ ocorre apenas entre o possuído e o possuidor, já a forma sĩ ocorre nos mesmos contextos que sõ, com exceção da co-ocorrência com pronome resumptivo sakiama.
c) O nome kia é usado principalmente, mesmo que não exclusivamente, para denotar a posse de bens conhecidos e/ou adquiridos a partir do contato com o homem “branco”. Ele ocorre imediatamente à direita do possuidor.
Predicados possessivosAs mesmas formas de sintagmas nominais que se referem à posse inalienável podem ser interpretadas como predicados[15]:
No entanto, nomes de elementos possuídos que admitem prefixos relacionais, quando apresentam o prefixo s-, admitem de modo único a interpretação predicativa. Nessa situação, o sintagma nominal que se refere ao possuído forma o núcleo do predicado, em que o sintagma nominal referente ao possuidor é o sujeito.
Nas construções de posse alienável, quando o nominal de posse -õ é marcado pelo relacional s- a interpretação é unicamente predicativa também. Nesse caso, sõ que constitui o núcleo do predicado, seguido pelo possuído, em que o possuidor é o sujeito Posse inerenteEste caso de distinção se dá entre nomes que se referem a bens obrigatoriamente possuídos e não-obrigatoriamente possuídos. Os nomes referentes a bens inerentes são marcados pelos prefixos s-, ĩ- e ∅, os quais fazem referência a um possuidor, e os não-inerentes são não-marcados.[15]
VerboTempo, aspecto, modo e evidencialidadeO verbo é, segundo a tese de Dourado (2001),[10] “o constituinte mais complexo da gramática da língua Panará, com características polissintéticas”. O tempo, aspecto, modo e evidencialidade verbal na língua são percebidos pelo uso de partículas distintas entre si: o modo é marcado por clíticos na primeira posição à esquerda do verbo (exceto o imperativo, que apresenta duas partículas descontínuas), o aspecto é evidenciado pela forma verbal, o tempo é codificado por advérbios indicadores de temporalidade, e a evidencialidade é definida por partículas evidenciativas.[11] O modo no Panará, orientado para o falante, demonstra em que grau este deseja assegurar ou não a verdade do que propõe. Tenta distinguir, basicamente, o que é fato ou não-fato. Existem, assim, três modos: realis, irrealis, e imperativo. O modo realis, que distingue eventos como ocorrendo no mundo real e é associado aos tempos verbais equivalentes ao presente habitual, ao presente progressivo e ao passado, é marcado pelo clítico yâ ( [ɯə], na denominação fonética atual, ou [yɨ], na denominação antiga) para verbos intransitivos e não-marcado para verbos transitivos. Já o modo irrealis, que distingue eventos como não ocorrendo no mundo real e é associado ao tempo futuro, é marcado por ka (tanto para verbos transitivos como intransitivos). O imperativo constitui exceção dos demais, pois sua função não é oferecer um grau de asserção. Quando se trata nesse de um verbo intransitivo, este pode ser não marcado ou marcado por duas partículas descontínuas, uma antes e outra depois do verbo: kua...hã para denotar o imperativo afirmativo, ha...sã para o imperativo negativo. Quando se fala em um verbo transitivo, o imperativo é marcado pelo clítico referente ao modo irrealis no lugar de kua e ha.
Em Panará existe uma classe de verbos que ocorrem ora com uma forma breve, ora com uma forma longa (sem ou com uma sílaba final). Essa oposição, conforme é observado na vasta maioria dos dados, denuncia o aspecto verbal, de maneira que a forma longa se refere ao aspecto perfectivo, no qual a ação é vista por inteiro ou como concluída, e a forma breve se refere ao aspecto imperfectivo, no qual a ação é vista parcialmente ou como algo em andamento, não concluído. Nessa classe, a forma longa do verbo, os sufixos -ri ~ -ni ~ -ti, ou a reduplicação da última sílaba, marcam o aspecto perfectivo, e na forma breve, o morfema zero marca o aspecto imperfectivo. De modo geral, o passado e o presente habitual são predominantemente definidos pelo aspecto perfectivo, enquanto o imperfectivo define principalmente o futuro, o presente progressivo e os verbos em orações interrogativas. O tempo é marcado por três níveis básicos de advérbios que indicam relação temporal: ian ‘passado, ontem’, kowmã ‘presente, hoje, agora’ e pykowmã ‘futuro, amanhã’. Há outros além destes, porém são menos comuns. Quanto à evidencialidade, existem, no Panará, ao menos cinco formas livres indicativas desta, que se referem à atitude do falante com relação à veracidade da informação contida na oração. São de três tipos diferentes: (1) três formas se referem ao não-comprometimento do falante com a verdade da afirmação; (2) uma forma aponta para a fidelidade da informação em relação à sua fonte; (3) e uma outra forma indica que a informação foi frustrada. (1) Evidenciais ĩnɛ ~ inẽ, kypy e tapia, traduzidos livremente como ‘talvez, parecer, achar’. ĩnɛ ~ inẽ - sempre no início da oração; ocorrências: sozinho, só com kypy, só com tapia ou com ambos. kypy - ocupa a posição entre o sujeito e o verbo da oração; ocorrências: com inẽ, ou simultaneamente com este e tapia. Tapia - posicionado depois do verbo; ocorrências: não ocorre apenas com kypy.
(2) Evidencial tiãni ~ tiãri, que se trata do evidencial reportivo (informação do discurso será reproduzida exatamente como foi contada). Ocorre sempre após o último verbo da sentença e é muito encontrado no início de narrativas para atrair a atenção do ouvinte, por mostrar que o que se vai narrar merece ser contado.
(3) Evidencial akua ~ rãkua, que ocorre também em posição pós-verbal, indica frustração ou contrariedade à expectativa contida na proposição.
Ordem da frase e alinhamentoA ordem frasal, ou ordem dos constituintes, na língua Panará é predominantemente (cerca de 90% dos dados obtidos sobre orações simples independentes e neutras) SVO (sujeito-verbo-objeto), contra 10% dos dados na ordem SOV (sujeito-objeto-verbo) para orações com verbo transitivo. Para orações com verbos intransitivos, predominam (75% dos dados) orações na ordem SV, contra 25% na ordem VS. Quanto ao alinhamento, o modo em Panará se relaciona ao sistema de caso no que diz respeito à marcação de pessoa no verbo. Utiliza o sistema ergativo/absolutivo na organização das relações argumentos/verbo no modo realis, e o sistema nominativo/acusativo no modo irrealis. Isso ocorre uma vez que dados sugerem haver no Panará uma dissociação entre propriedades de codificação expressa, como marcação de caso, concordância e ordem de constituintes, e propriedades de comportamento e controle das relações gramaticais - as primeiras seguem o padrão ergativo-absolutivo, enquanto as últimas seguem o padrão nominativo-acusativo. Por causa disso, morfologicamente se diz que a língua possui um alinhamento ergativo-absolutivo superficial (ou ergatividade superficial), predominando sintaticamente o nominativo-acusativo.[10][16] Frases comparativasO Panará expressa comparação através de construções sintaticamente distintas: a justaposição de orações (com ou sem o apagamento do verbo da segunda oração) ou de sintagmas nominais, que é a mais usual, ou a comparação de um sintagma nominal inicial com um padrão demarcado.[10] A qualidade comparada pode ser expressa por um adjetivo ou por um predicado intransitivo, cujo núcleo deve ser o próprio adjetivo. Os adjetivos expressam as qualidades dos elementos em questão comparadas quanto à superioridade ou inferioridade. Se a comparação for de igualdade, apenas uma qualidade é expressa e a conjunção associativa (ASS) mẽ ‘também’ vai seguir o segundo elemento da comparação.[10] Exemplos:
As construções comparativas gramaticalizadas, que são as do segundo caso, apresentam o marcador de comparação (MCOM) hotosakre, o qual pode ocorrer depois do adjetivo ou sintagma nominal que expressa o padrão da comparação. Exemplos:
Já o superlativo é expresso por meio de advérbios intensificadores que seguem ou precedem o adjetivo. Exemplo:
VocabulárioNumeraçãoO sistema de numeração da língua Panará é bem simples: consiste em quatro itens que não são exclusivamente numerais cardinais, e podem funcionar como multiplicativos, determinantes e quantificadores.[10][11]
Referências
Notas
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