Em relação ao gênero, Simone de Beauvoir disse: "Não se nasce mulher, se torna uma".[6] Essa visão propõe que, nos estudos de gênero, o termo "gênero" deve ser usado para se referir às construções sociais e culturais das masculinidades e feminilidades e não ao estado de ser homem ou mulher em sua totalidade.[7] No entanto, essa visão não é mantida por todos os teóricos de gênero. A visão de Beauvoir é a que muitos sociólogos apoiam, embora haja muitos outros contribuintes para o campo dos estudos de gênero com diferentes origens e pontos de vista opostos, como o psicanalista Jacques Lacan e feministas como Judith Butler.
O gênero é pertinente a muitas disciplinas, como a teoria literária, os estudos de teatro e do cinema, a história da arte contemporânea, a antropologia, a sociologia, a sociolinguística e a psicologia. No entanto, essas disciplinas às vezes diferem em suas abordagens sobre como e por que o gênero é estudado. Por exemplo, na antropologia, na sociologia e na psicologia, o gênero é frequentemente estudado como uma prática, enquanto nos estudos culturais as representações de gênero são mais frequentemente examinadas. Na política, o gênero pode ser visto como um discurso fundamental que os atores políticos empregam para posicionar-se em uma variedade de questões.[8] Os estudos de gênero também são uma disciplina em si, incorporando métodos e abordagens de uma ampla gama de disciplinas.[9]
Cada campo passou a considerar o "gênero" como uma prática, às vezes referida como algo que é performativo. A teoria feminista da psicanálise, articulada principalmente por Julia Kristeva[10] (a "semiótica" e "abjeção") e Bracha L. Ettinger[11] (o "eros matricial feminino-prematerno-materno",[12] a "trans-subjetividade matricial" e as "fantasias maternais primitivas"),[13] e informadas por Freud, Lacan e pela teoria da relação de objetos, é muito influente nos estudos de gênero. De acordo com Sam Killermann, o gênero também pode ser dividido em três categorias, identidade de gênero, expressão de gênero e sexo biológico.[14]
Ainda no século XIX, a questão do estudo de gênero foi abordada em diversas obras como dicionários e revistas através de críticas ao modelo tradicional masculino. Por exemplo, em "Mulheres influentes e seu povo", a feminista alemã Louise Otto-Peters critica os métodos de seleção de biografias da época caracterizados pela união aos homens e não por feitos próprios. Neste contexto, inclui-se também o papel da mulher na revolução francesa no qual também lutaram por igualdades de direitos, seguidos a reivindicações por direitos políticos e sociais principalmente no que se refere a maternidade e posteriormente à questão profissional e do lar.[15]
Brasil
Embora o movimento feminista no Brasil tenha se intensificado a partir dos anos 1970, foi mais tardia a introdução do tema no mundo acadêmico.[16] Foucault se popularizou entre os acadêmicos brasileiros a partir do fim da década de 1980, e a partir de então surgem os primeiros estudos sobre a condição feminina no Brasil baseados nas premissas do debate teórico iniciado nos EUA.
A introdução dos estudos de gênero no Brasil se deu através de iniciativas coordenadas nas áreas de história e sociologia a partir dos anos 1990. Nessa mesma época foi criado na UNICAMP o Grupo de Estudos de Gênero Pagu, sob a liderança de Margareth Rago, Adriana Piscitelli, Elisabeth Lobo e Mariza Corrêa,[17] grupo esse responsável pela edição do periódico Cadernos Pagu,[18] hoje referência na área.
Os conceitos de gênero e sexo biológico embora possam parecer sinônimos foram utilizados separadamente para enfatizar a distinção entre a condição biológica determinante do sexo e as construções sociais que envolvem as relações entre gêneros.[15] Segundo Soihet (op cit., págs. 266 e 267), "gênero" abrange o aspecto relacional entre as mulheres e os homens, onde nenhum dos dois podem ser compreendidos em estudos que os considere em separado. Soihet (op cit., pág. 267) frisa ainda que o termo "gênero" foi proposto em defesa de que "a pesquisa sobre as mulheres transformaria fundamentalmente os paradigmas da disciplina; acrescentaria não só os novos temas, como também imporia uma reavaliação crítica das premissas e critérios do trabalho científico" e que implicaria não apenas em "uma nova história das mulheres, mas uma nova história"[20]
Nos estudos de gênero, ideologia de gênero é a expressão usada para descrever as crenças normativas sobre os papéis sociais apropriados e as naturezas fundamentais de mulheres e homens, sejam essas pessoas cisgênero ou transgênero, nas sociedades humanas. A distinção entre sexo e gênero é central para o conceito, visto que as diferenças biológicas entre homens e mulheres, ou suas diferenças sexuais, são usadas como base para a atribuição de gênero e a construção cultural de identidades de gênero. As pessoas são atribuídas a um gênero em todas as sociedades, mas os sistemas de gênero e as ideologias de gênero que são pensados para ajudar a sustentá-los são culturalmente variáveis.[21][22] Por esta ótica, não existe apenas o gênero masculino e feminino, mas um espectro que pode ser muito mais amplo do que a identificação binária.[23]
A ideologia de gênero é o sistema de crenças pelas quais as pessoas explicam, responsabilizam e justificam seu comportamento e interpretam e avaliam o dos outros. Em suma, é o conjunto de crenças que governam a participação das pessoas na ordem de gênero e pelo qual explicam e justificam essa participação.[24] O conceito é frequentemente usado, mas raramente questionado, em contraste a outros, como a identidade de gênero. Suspeita-se que a flexibilidade das definições e os múltiplos significados associados à ideologia, em geral, sejam a fonte de seu uso comum e de sua desconsideração conceitual. Em “terminologia de reorganização” (Gerring 1997: 960), a ideologia de gênero é frequentemente usada como sinônimo de conceitos como atitudes de gênero, normas de gênero, poder de gênero, relações de gênero, estruturas de gênero e dinâmicas de gênero.[25]
Do ponto de vista acadêmico, ideologia de gênero é um conceito considerado uma "falácia construída".[26] Tal falácia tem sido utilizada como instrumento político para despertar uma paranoia a respeito de eventuais políticas públicas que possam ser utilizadas. Tal paranoia é responsável pela fantasia de que propostas inexistentes de políticas públicas, como iniciação à prática sexual e a instituição de banheiros unissex mesmo na educação infantil, sejam noticiadas em tom de alarme, quando nenhum ator político sequer as tenha sugerido. Tantas notícias fantasiosas impedem que uma agenda efetivamente voltada para os direitos humanos, que compreende o respeito às crianças, à tolerância em relação à orientação sexual de adolescentes tenham êxito. Neste sentido, as pessoas que defendem a tolerância e o respeito a crianças e adolescentes, levando em conta a proteção, e jamais a exploração, de sua sexualidade são vistas como “uma força do mal, no inimigo a ser combatido a qualquer custo”.[27] Esse embate tem movimentado a política brasileira.[28] Nesse contexto, os denunciantes "a ideologia de gênero" podem ser responsabilizados por desrespeitar os direitos humanos e expor crianças e adolescentes de forma violenta e abjeta. Portanto, a pretensa cruzada contra a ideologia de gênero se reforça como instrumento para ocultar a ação daqueles que perpetuam as opressões, principalmente sexuais, contra as mulheres, e não para promover a proteção de direitos e o respeito a crianças e adolescentes.
Outros significados
O termo ideologia de gênero no significado literal é encontrado em publicações e estudos sobre vários temas:
Em arqueologia, o termo é usado para tentar explicar as dinâmicas de gênero das sociedades, por exemplo no livro In Pursuit of Gender: Worldwide Archaeological Approaches, a definição de Hays-Gilpin e Whitley é que a ideologia de gênero são os significados e valores atribuídos às categorias de gênero em uma dada cultura e atribuição de gênero a fenômenos ou ideias como sol/lua, terra/céu, macio/duro etc.[29]
Nos estudos de linguística, quando pesquisado as relações, as interseções e tensões entre linguagem e gênero.[30]
Em história, por exemplo as origens da desigualdade entre homens e mulheres que se estabeleceu na Era Vitoriana.[31] A manutenção dos papeis de gênero durante o comunismo na Europa nomeada como "ideologia de gênero neotradicional"[32] e também após o colapso do regime.[33]
Em pedagogia, por exemplo ao estudar a associação entre a ideologia de gênero precoce e simultânea dos pais e os comportamentos de gênero e as atitudes de gênero dos filhos ,[37]
Em livros sobre religião, como sobre as demandas no programa de catolicismo nacional de Francisco Franco conflitantes com o desenvolvimento econômico patrocinado pelo Estado que pretendia uma sociedade de consumo moderna,[38] estudo e publicação sobre uma "personalização" do catolicismo em Gana.[39] Livro de Susan Starr Sered, Priestess, Mother, Sacred Sister: Religions Dominated by Women que descreve e analisa religiões, espalhadas por todo o mundo, em que as mulheres são a maioria dos líderes e a maioria dos participantes.[40]
Críticas
O historiador e teórico Bryan Palmer argumenta que a atual dependência dos estudos de gênero no pós-estruturalismo - com sua reificação do discurso e evitação das estruturas de opressão e lutas de resistência - obscurece as origens, significados e consequências de eventos e processos históricos. Palmer procura combater as tendências atuais nos estudos de gênero com um argumento para a necessidade de analisar as experiências vividas e as estruturas de subordinação e poder.[41]
A teórica feminista Rosi Braidotti (1994) criticou os estudos de gênero como "a tomada da agenda feminista pelos estudos sobre masculinidade, o que resulta na transferência de financiamento de cargos feministas para outros tipos de cargos. Houve casos de cargos anunciados como 'estudos de gênero' que foram entregues a 'garotos inteligentes'. Algumas das tomadas competitivas têm a ver com estudos sobre homossexuais. De especial significado nesta discussão é o papel da editora Routledge, que, em nossa opinião, é responsável por promover o gênero como uma forma de desradicalizar a agenda feminista, revender a masculinidade e a identidade masculina gay".[42] Calvin Thomas respondeu que, "como Joseph Allen Boone ressalta, 'muitos dos homens da academia que são os 'aliados' feministas mais solidários são gays'" e que é "falso" ignorar as maneiras pelas quais editoras importantes, como a Routledge, promoveram teóricas feministas.[43]
Entre grupos religiosos e conservadores, desde o início do século XXI, o termo tem sido apropriado sem respaldo científico para distorcer aspectos dos estudos de gênero com o objetivo de criar um tipo de pânico moral e alimentar teorias conspiratórias sobre um conluio mundial para "destruir os valores familiares" e voltar a opinião pública contra políticas sociais direcionadas para as mulheres e a população LGBT, uma estratégia conhecida como falácia do espantalho.[44][45] A Igreja Católica tem usado o termo a partir da década de 90,[46] pelo menos desde 1998, ano de publicação de uma nota da Conferência Episcopal do Peru, intitulada "A ideologia de gênero: seus perigos e alcances".[47] O Papa Francisco falou sobre "colonização ideológica",[48] e em 2019, a Congregação para a Educação Católica publicou o documento denominado "Homem e mulher os criou" cujo subtítulo é “Para uma via de diálogo sobre a questão do gender na educação.”[49] A França foi um dos primeiros países em que essa alegação se espalhou quando movimentos católicos marcharam nas ruas de Paris contra a lei sobre casamento e adoção de homossexuais.[50] Bruno Perreau mostrou que esse medo tem profundas raízes históricas.[51] Ele argumenta que a rejeição dos estudos de gênero e da teoria queer expressa ansiedades sobre a identidade nacional e as políticas voltadas para minorias. Jayson Harsin estudou os aspectos do movimento da teoria anti-estudos de gênero francês e descobriu que ele partilha qualidades com a política populista de direita do pós-verdade.[52]
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