Passeio Com Johnny Guitar
Passeio com Johnny Guitar é uma curta-metragem portuguesa de 1995, realizada e escrita por João César Monteiro e produzida por Joaquim Pinto.[1] O filme recupera o alter-ego de Monteiro, o personagem João de Deus, protagonista da Teologia de Deus (saga cinematográfica iniciada em Recordações da Casa Amarela) e é evocativo da origem de A Comédia de Deus.[2] Depois de ter uma estreia em 1995 em Portugal, a curta-metragem foi selecionada para o Festival de Cannes, onde estreou a 10 de maio de 1996. SinopseNo Dossier de Imprensa de Passeio com Johnny Guitar[3], lê-se: "Vindo, sabe Deus de aonde, o senhor João de Deus regressa a casa com um estilhaço na cabeça: trata-se, sem trepanação à vista, de um fragmento da banda sonora do filme chamado Johnny Guitar." Fuma um cigarro e avança por uma típica rua de paralelepípedos lisboeta, dando a boa-noite a outro fumante solitário. Silencioso, João de Deus, entra no seu quarto e abre uma janela de onde vê um outro apartamento do lado oposto da rua, onde uma jovem solitária escova os cabelos na cama. As vozes de Vienna e Logan, interpretados por Joan Crawford e Sterling Hayden, explodem no volume máximo de seu aparelho de TV. Contra este pano de fundo, o homem caminha pelo quarto e fuma. A sinopse oficial prossegue: "A cidade amanhece, anunciando outros passeios. Dizem que o senhor Monteiro, alter ego do senhor de Deus, já foi visto a passear com um certo Nicholas Ray." Elenco
Equipa técnica
ProduçãoNuma fase inicial das rodagens, A Comédia de Deus começou por ser filmado em scope. Devido a múltiplos problemas e conflitos, o produtor Joaquim Pinto decidiu cancelar a filmagem. Meses depois, o projeto seria reiniciado por completo, com uma nova equipe e novo formato. Contudo, do primeiro momento de produção, o realizador guardou três planos-sequência a partir dos quais editou três curtas-metragens diferentes: Lettera Amorosa, Bestiário ou o Cortejo de Orfeu e Passeio com Johnny Guitar.[6] Todas elas remetem para cenas incluídas na longa-metragem, e retratam o protagonista, João de Deus. Passeio com Johnny Guitar em particular, é uma pequena ficção composta por esse material, que seria posteriormente sincronizado com o mais célebre diálogo do filme de Nicholas Ray a que vai buscar o título: Johnny Guitar.[7] É uma produção portuguesa do G.E.R. (Grupo de Estudos e Realizações, Lda) e da Madragoa Filmes de 3:30 minutos, numa bitola de 35 mm.[8] Esta obra integra a saga cinematográfica de César Monteiro, que intitulou Teologia de Deus: composta pelas longas-metragens Recordações da Casa Amarela (1989), A Comédia de Deus (1995), Le Bassin de J.W. (1997), As Bodas de Deus (1999) e Vai e Vem (2003), bem como as curtas-metragens Conserva Acabada (1990), O Bestiário ou o Cortejo de Orfeu (1995), Lettera Amorosa (1995) e Passeio com Johnny Guitar (1995).[9] EstéticaA curta-metragem é notável pelo modo como traça relações entre som e imagem, corpo e memória, gesto e afeto, através das referências cinéfilas que Monteiro faz, entre outras, a uma cena particular entre os personagens de Joan Crawford e Sterling Hayden no filme de 1954 Johnny Guitar de Nicholas Ray. Esta cena tem sido bastante comentada e evocada por cinéfilos como François Truffaut e Jean-Luc Godard. No livro Through the Glass Darkly: Cinephilia Reconsidered, os autores Paul Willemen e Noel King associam-na a uma sensação de epifania e excesso.[10] A curta-metragem de Monteiro é segmentada em três takes gravados em três espaços distintos, condensando a progressão espacial e temporal da cena em Johnny Guitar, que se desenvolve apenas em duas seções do salão de Vienna (personagem de Joan Crawford), mas em três fases diferentes. O uso do CinemaScope por Monteiro maximiza os efeitos das composições de Ray, nomeadamente a sua interação de distância e proximidade entre corpos. Alguns movimentos do Passeio com Johnny Guitar são coreografados como espelho imaginado por Ray. No entanto, esta evocação não é mera reprodução, uma vez que Monteiro procura expandir as ressonâncias emocionais associadas à cena e banda sonora.[11] O primeiro take de Passeio com Johnny Guitar permite identificar o recorrente personagem alter-ego da obra de Monteiro, João de Deus. Na sua crónica em Mubi Notebook, Cristina Álvarez López[11] propõe que um ensaio intitulado Johnny Guitar (1954), Nicholas Ray do crítico João Bénard da Costa, pode ser um elo de ligação entre o filme de Monteiro e Ray, para além das evidências mais óbvias. Nesse texto, Bénard da Costa comenta a receção negativa de Johnny Guitar quando estreou na Europa: "A maioria achou que só gente gravemente perturbada ou gravemente analfabeta podia gostar" do filme.[12] Assim, faz sentido que João de Deus, o pária social por excelência, figura que se rebela contra a opinião dominante e ordem burguesa, seja considerado o público-alvo deste filme. No segundo take da curta-metragem, diante da câmara, João de Deus caminha timidamente em direção à janela, de onde olha para a sua jovem vizinha no apartamento da frente. Este plano recupera uma temática recorrente dos filmes de Monteiro acerca da acessibilidade do desejo e erotismo deificado. Neste momento, ecoa o diálogo de Johnny Guitar entre Vienna e o seu amante de outrora, Logan.[13] No seu ensaio sobre o filme, Bénard da Costa escreve que "reduzido a escrito [e] a seco, o diálogo é confrangedoramente banal".[12] Assim, em Passeio com Johnny Guitar, são precisamente as qualidades afetivas e rítmicas da banda sonora de Ray que arrebatam João de Deus. Impulsionado pelas entonações, pausas e acelerações do diálogo, enredado nos ciclos e modulações da música, o personagem movimenta-se ou faz pausas no espaço. As qualidades deste trecho sonoro expandem-se através do corpo do personagem, bem como do filme. O que ouvimos corresponde a um fragmento de película que o protagonista tem alojado na cabeça. O que vemos, sendo que João é também tornado espectador, é um filme dentro do filme. E se o som é um citação direta do filme de Ray, a imagem é uma referência a Rear Window, de Alfred Hitchcock.[14] Num último take de Passeio com Johnny Guitar, João de Deus fuma à janela perante uma vista artificial e expressionista da cidade de Lisboa: um plano de fundo preto e branco, imbuído de tons de azul, com apenas alguns telhados exibindo manchas avermelhadas. Quando a linha final do diálogo da cena Johnny Guitar é ouvida, João de Deus sai de plano, em busca de alguma forma de sociabilidade, coincidindo com uma nova configuração na mise en scène de Johnny Guitar na qual Vienna deixa a sua posição na janela.[15] Na curta de Monteiro segue-se a chegada de um amanhecer. Este momento foi comparado por López[11] com Le rayon vert de Éric Rohmer, uma vez que apesar da menor escala, envolve movimentos complementares: a saída do personagem do plano, uma abertura a visão dos espetadores para a paisagem da cidade; uma ligeira nitidez da definição focal da imagem; o lento avanço da câmara; a primeira luz do dia transformando o cenário. Esta imagem é também evocativa do final de Nosferatu de F.W. Murnau onde, por uma janela aberta, vemos as primeiras luzes do dia tingindo os telhados dos edifícios, pouco antes de o vampiro desaparecer. O amanhecer assistido pela janela de João de Deus, surge em sincronia com o beijo entre os personagens Vienna e Johnny no Hotel Aurora e o do casal protagonista no final de Sunrise: A Song of Two Humans de Murnau (1927). Em Passeio com Johnny Guitar, as casas, chaminés, árvores e telhados adquirem uma variedade de cores - como se uma decoração noturna pintada tivesse sido substituída por uma paisagem diurna real.[13] DistribuiçãoApós a sua estreia em 1995, o filme foi exibido, acima de tudo, no contexto de festivais de cinema, dos quais se destacam:
CríticaA crítica especializada elogiou Passeio com Johnny Guitar, enquanto objeto cinematográfico singular. Para o crítico de cinema e programador Ricardo Vieira Lisboa, este é um dos melhores filmes portugueses de sempre.[23] Carlos Miranda (Cinemaville) elogia as imagens solitárias e melancólicas.[24] No seu texto no Notebook da Mubi, Cristina Álvarez López caracteriza a obra como "um ótimo filme para se entender o que é a cinefilia", acrescentando que a mesma "consegue percorrer uma grande distância em apenas três minutos e meio."[25] João Lameira em À pala de Walsh escreve que do trio de curtas-metragens surgidas a partir de A Comédia de Deus, "destaca-se claramente O Passeio com Johnny Guitar, em que se ouve o famosíssimo diálogo entre Sterling Hayden e Joan Crawford do esdrúxulo western de Nicholas Ray".[26] Uma vez integrando a seleção oficial de curtas do Festival de Cannes, Passeio com Johnny Guitar competiu para a Palma de Ouro de curta-metragem, mas não viria a sair vencedor do prémio.[27] Referências
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