Moqueca

Moqueca baiana servida em panela de barro

A moqueca, muqueca ou poqueca[1]:1158, 1365 (do quimbundo mu'keka: 'caldeirada de peixe'[2] ou do tupi opokeka: 'fazer embrulho'[3]) é um cozido, geralmente de peixe, típico da culinária brasileira e da culinária angolana.[4]

No Brasil, é prato típico dos estados do Pará, da Bahia e do Espírito Santo. Pode ser preparada com peixe, mariscos, crustáceos, galinha ou ovos de galinha. Mais recentemente, criaram-se variações vegetarianas, substituindo-se o peixe por ingredientes como polpa de caju verde, banana-da-terra,[5] jaca, palmito, cogumelos, tofu, berinjela, couve-flor etc.[6]

Hipóteses de origem

Para alguns estudiosos da gastronomia brasileira, a origem da moqueca brasileira remontaria à peixada trazida pelos portugueses, à qual os africanos teriam acrescentado ingredientes da sua tradição culinária. Contudo, é importante lembrar que os indígenas tinham, no peixe, um alimento de extrema importância, assim como a farinha de mandioca. Tal associação – peixe e farinha – conservou-se na combinação da moqueca com o pirão.[3][7]

Segundo Alves Filho e Giovanni,.[8] durante muitos anos, ficou adormecida, nas gavetas de um arquivo europeu, uma carta do padre Luís de Grã, datada de 1554, que é provavelmente o primeiro documento a se referir ao moquém ('carne assada ou seca em uma grelha de varas, uma técnica de preparação indígena) e à carne moqueada. O padre Fernão de Cardim escreveu, em 1584: "Eles nos deram a cear de sua pobreza peixinhos de moquém, isto é, assados, batatas, cará, mangará e outras frutas da terra..."[9] Já o padre Monteiro, em carta escrita quase um século depois, em 1610, foi ainda mais longe, dando livre curso ao seu entusiasmo pela dieta indígena: "A carne de moquém, garante, se vai assando com tal têmpera, que leva vantagem a toda invenção do assado, na limpeza, na ternura e sabor".[10]

De toda forma, existe uma tendência, do século XVIII em diante, em ligar essas moqueadas às carnes de peixe. "Moquém" era, simplesmente, o assado envolto em folha e feito sobre a brasa ou sob a brasa. "Moquém", em língua tupi, significa algo como "secador" para tostar a carne. Na técnica tradicional indígena, o costume era assar a carne (ou cozê-la em seu próprio suco). Conforme testemunho do naturalista alemão do século XVII George Marcgrave,[11] os índios, envolviam, com folhas de árvores ou ervas, e cobriam com cinza quente os peixes que iriam comer.[12] Essa maneira branda de assar ou cozer a carne em seu próprio suco se manteve.

Tipos

Embora aparentemente semelhantes, há diferenças significativas, tanto nos ingredientes quanto no sabor, entre as moquecas paraense, capixaba, baiana e angolana: a capixaba não contêm pimentão, nem dendê – ingrediente que denota a influência africana sobre a culinária baiana - e também não utiliza leite de coco, que pode ou não estar presente na moqueca baiana; já a moqueca angolana é muito semelhante à moqueca baiana.[13][14][15] Todas, entretanto, são tradicionalmente preparadas e servidas em panelas de barro e todas contêm tomates maduros, cebolas brancas cortadas e coentro picado. Na receita capixaba, o azeite de dendê é substituído por azeite de oliva e urucum, um corante natural.

À influência portuguesa, acrescentou-se a africanidade na receita da moqueca baiana e na paraense. Nesta última, inclui elementos da culinária indígena como o tucupi, o jambu, a goma de mandioca, a chicória além de peixes típicos do local. Já na receita capixaba, a influência africana não aparece. Isto porque o Espírito Santo recebeu, ao longo de sua história, um pequeno número de africanos escravizados, e estes, em sua maioria, eram oriundos da macrorregião polarizada pelo porto de Luanda, formada pelo eixo Angola-Benguela-Cabinda, com hábitos alimentares semelhantes aos dos portugueses, com quem conviviam desde o século XV. Diferentemente, na Bahia, os africanos chegaram em número muito superior: Salvador foi o maior porto de entrada de escravizados africanos no Brasil até o final do século XVIII, sendo que esses escravizados eram predominantemente minas, jejes e nagôs.[16]

Em Salvador, a "defesa das velhas comidas africanas" é intrinsecamente ligada aos "candomblés, do culto jeje-nagô, onde a cozinha pôde manter os elementos primários de sua sobrevivência" mas, além disso, foi capaz de influir decisivamente na constituição daquilo que se conhece como culinária baiana. Por outro lado, o isolamento que caracterizou a ocupação do Espírito Santo até o início do século XIX pode ter contribuído para que sua cozinha permanecesse mais semelhante à portuguesa (no uso do azeite de oliva), com alguma influência indígena (evidenciada no uso do urucum — que também está presente na moqueca baiana — e do pirão de farinha de mandioca), que é uma especialidade nordestina.

A moqueca é um prato típico presente em todo o litoral nordestino e faz parte dos destaques de cardápios de restaurantes e barracas de praias de todo o Nordeste — especialmente na Bahia. Constitui, portanto, mais uma receita que agrega valor cultural junto às mais diversas especialidades litorâneas nordestinas, como vatapá, pirão, bobó de camarão, dentre outras.

Moqueca capixaba na panela de barro

Na região litorânea do estado do Espírito Santo, a moqueca está presente no cardápio de 87%[carece de fontes?] dos estabelecimentos voltados à venda de refeições, como uma especialidade de forte apelo identitário. A receita é bem semelhante em todos esses estabelecimentos, com pequenas variações na forma de preparo. Na receita típica capixaba, a cor vem da tintura de urucum; o azeite é de oliva. A moldura perfeita fica por conta da panela de barro, feita pelas paneleiras do bairro de Goiabeiras Velha, em Vitória. Essas artesãs moldam, queimam e tingem as panelas com cascas tiradas do manguezal. O costume de preparar e servir moqueca em panela de barro está presente em todo o Brasil.

Panela de barro

A técnica cerâmica utilizada é reconhecida por estudos arqueológicos como legado cultural da tradição tupi-guarani e da tradição cerâmica denominada una,[nota 1] com maior número de elementos identificados com esta última.[18]

Moqueca capixaba, cozido de peixe com camarão e verduras na panela de barro servido com pirão de peixe e arroz branco
Moqueca capixaba servida com pirão e arroz

Esse saber foi apropriado dos índios pelos afrodescendentes que vieram a ocupar a margem do manguezal, local historicamente identificado com a produção de panelas de barro. O naturalista Auguste de Saint-Hilaire[19] visitou a região em 1815 e fez a primeira referência a essas panelas, descritas como "caldeira de terracota, de orla muito baixa e fundo muito raso", utilizadas para torrar farinha e fabricadas "num lugar chamado Goiabeiras, próximo da capital do Espírito Santo". Goiabeiras é o lugar onde o ofício das paneleirasse se mantém por tradição. Ali foram encontrados sítios arqueológicos cerâmicos, remanescentes da ocupação indígena, no alto da pequena elevação conhecida como Morro Boa Vista e nas proximidades do aeroporto de Goiabeiras.[20]

As moquecas e a torta capixaba (outra iguaria local característica da Semana Santa) são parte da identidade cultural do povo do Espírito Santo, e isso certamente explica a continuidade histórica da fabricação artesanal das panelas de barro. A cidade de Vitória cresceu e alcançou Goiabeiras, que se transformou em um bairro da capital. Mas ali continuam sendo feitas, como sempre, as panelas pretas. Enquanto a cidade crescia, as paneleiras foram progressivamente se profissionalizando e fazendo de seu ofício a mais visível atividade cultural e econômica do lugar.

Notas

  1. Do ponto de vista arqueológico, a região ocupada pelos Goitacá, Puri, Coroado e Coropó (grupo linguístico Macro-Jê) foi a área da tradição cerâmica denominada Una.[17]

Referências

  1. FERREIRA, A. B. H. Novo dicionário da língua portuguesa. 2ª edição. Rio de Janeiro. Nova Fronteira. 1986.
  2. CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa 4 ed.. Rio de Janeiro: Lexikon, 2010
  3. a b CASCUDO, Luís da Câmara, História da Alimentação no Brasil. Global, 2004. Citação: "Os peixes embrulhados em folhas e assados nesse forno subterrâneo tinham o nome de pokeka, que deu moqueca, querendo significar 'embrulhado, apinhado, enrolado'. O que conhecemos por moqueca, veio dessa comida."
  4. «Definição ou significado de muqueca no Dicionário Infopédia da Língua Portuguesa com Acordo Ortográfico». Infopédia - Dicionários Porto Editora. Consultado em 16 de janeiro de 2017 
  5. Gourmet a dois. Disponível em http://gourmetadois.com/pub/moqueca-vegetariana-49.html. Acesso em 10 de julho de 2017.
  6. The uniplanet. Disponível em http://www.theuniplanet.com/2016/09/7-receitas-de-moqueca-vegetariana-e.html. Acesso em 10 de julho de 2017.
  7. Questão de Estado: A Hitória da Moqueca. Capixabas de um lado, baianos do outro. Afinal, quem inventou o prato? Por Flávia G Pinho. Casa e Jardim, 18 de março de 2016.
  8. Alves Filho, Ivan ; Giovanni, Roberto di. Cozinha Brasileira com Recheio de História. Revan, 2000
  9. Cardim, F. Tratados da terra e gente do Brasil. São Paulo. Companhia Editora Nacional.1939. 2ª ed. Coleção Brasiliana, v.168. 379 p.
  10. PEIXOTO, Afrânio (org.) Cartas avulsas de jesuítas (1550-1568). Cartas de Letras Jesuíticas II. Rio de Janeiro. Publicações da Academia Brasileira, 1931.
  11. MARCGRAVE, George & PISO, Willem (1648) História natural do Brasil. São Paulo: Museu Paulista, 1942.
  12. Página 273 do livro História natural do Brasil. A Visão Holandesa do Brasil - textos clássicos do domínio colonial holandês (1630-1654) em formato eletrônico.
  13. Receita africana de moqueca de frango à angolana
  14. Receita de Moqueca africana (peixa à lumbo)
  15. Moqueca de camarão à angolana
  16. CAMPOS, Adriana Pereira; Nas barras dos tribunais: Direito e escravidão no Espírito Santo do século XIX (Tese de Doutorado), Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2003; apud MERLO, Patrícia; Repensando a tradição: a moqueca capixaba e a construção da identidade local Interseções [Rio de Janeiro] v. 13 n. 1, p. 26-39, jun. 2011.
  17. Dias, Ondemar (junho de 1979). «Dados para o Povoamento não Tupi guarani do Estado do Rio de Janeiro. Relações Arqueológicas e Etnográficas». Boletim de Instituto de Arqueologia Brasileira (8): 11-23. Arquivado do original em 27 de agosto de 2017 
  18. PEROTA, Celso et al. (1997) As paneleiras de Goiabeiras. Memória viva; 5. Vitória: Secretaria Municipal de Cultura, p. 14
  19. Viagem ao Espírito Santo e Rio Doce. Belo Horizonte: Itatiaia/USP, 1974, p.55
  20. Ofício das Paneleiras de Goiabeiras. Brasília, DF: IPHAN, 2006 (Dossiê Iphan; 3), p.17 ISBN 85-7334-031-2.

Ligações externas

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