A comunidade quilombola de Mata Cavalo é uma comunidade remanescente de quilombo, população tradicional brasileira, localizada no Mato Grosso, às margens da BR-MT 060, no município de Nossa Senhora do Livramento, situado a 50 quilômetros da capital Cuiabá. Mata Cavalo ocupa 14.622 hectares, divididos em seis comunidades: Aguaçu de Cima, Mata Cavalo de Cima, Ponte da Estiva (fazenda Ourinhos), Capim Verde (ou Mata Cavalo do Meio), Mutuca e Mata Cavalo de Baixo.[1][2]
História
As terras da comunidade de Mata Cavalo estão na área da antiga sesmaria Boa Vida, fundada em 1751 por mercê régia em favor de José Paes Falcão. Em 1772 a sesmaria foi vendida para Salvador Rodrigues de Siqueira. Seu filho Antônio Xavier de Siqueira herdou a propriedade e a dividiu em duas, separadas pelo ribeirão Mata Cavalos: uma ainda chamada Boa Vida, que permaneceu na família Siqueira, e a outra passou para a família Rondon.[3]
Em 1873 parte da sesmaria Rondon foi vendida para o negro liberto Marcelino Paes de Barros, um dos fundadores da comunidade de Mata Cavalo de Cima. A outra parte foi herdada por Maria Josefa de Abreu, que a vendeu em março de 1888 para o escravo Graciano da Silva Tavares, um dos fundadores da comunidade de Mata Cavalo de Baixo.[3]
Parte das terras da sesmaria Boa Vida foi doada em 1883 pela proprietária da época, Ana da Silva Tavares, a Leopoldino Alves da Costa, que a vendeu para o negro liberto Vicente Ferreira Mendes, fundador da comunidade da Mutuca. A outra parte foi doada por Ana Tavares aos seus escravizados e aos negros que haviam sido libertos por ocasião da morte de seu marido Ricardo José Alves Bastos. Com isso os favorecidos passaram a trabalhar a terra por conta própria, cultivando e colhendo para sustentar-se. Ao mesmo tempo, escravos fugitivos encontravam esconderijo nas matas da propriedade.[3][4]
Com a abolição da escravidão em 1888, muitos outros libertos passaram a viver na área, formando-se um arraial. Posteriormente, áreas contíguas, na região do córrego do Mutuca, foram adquiridas e assimiladas ao quilombo.[3] Entre os anos de 1890 e 1930, fazendeiros locais passaram a cobiçar as terras pertencentes ao quilombo. Por meio de aquisições legais e manipulações judiciais, como a grilagem de terras, invasões e adulteração do cercamento, omissão governamental, esses fazendeiros expandiram grandemente suas áreas de pastagem às custas da diminuição gradual das terras da comunidade quilombola. Nesse período, atos de violência e ameaças perpetrados por fazendeiros, pistoleiros e policia, foram fatores importantes que forçaram famílias quilombolas a ceder ou abandonar suas terras, deslocando-se para áreas periféricas de Cuiabá e Várzea Grande.[1][5]
As famílias que resistiram na região de Mata Cavalo enfrentaram ameaças constantes dos que desejavam apropriar-se das poucas terras remanescentes. O movimento de retomada das terras pelos quilombolas teve início por volta de 1960, com aquisição de terras de pequenos proprietários e trabalhadores brancos. No entanto, a partir dos anos 1980, com a redemocratização do país, a abertura política, as garantias constitucionais obtidas para os remanescentes de quilombos, a intensificação das mobilizações do movimento negro, a conscientização da comunidade local e sua reivindicação de uma identidade quilombola, o processo de retomada das terras do Mata Cavalo ganhou ímpeto.[1][5]
Segundo a pesquisadora Suely Dulce de Castilho, em 1997, após intensa luta do movimento negro local, e em conformidade com o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal, foram formados grupos de trabalho que envolveram técnicos da Secretaria de Estado da Cultura, representantes do grupo União e Consciência Negra, a Fundação Cultural Palmares e a própria comunidade de Mata Cavalo. Esses grupos desenvolveram estudos socioculturais e antropológicos visando verificar se a área poderia ser classificada como remanescente de quilombo, sendo confirmada essa categorização, atendendo aos critérios da Associação Brasileira de Antropologia.[1]
Tombamento
O tombamento de quilombos é previsto pela Constituição Brasileira de 1988, bastando a certificação pela Fundação Cultural Palmares:[6]
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira [...] § 5º Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos.
A comunidade quilombola de Mata Cavalo foi oficialmente reconhecida como remanescente de quilombo pela Fundação Cultural Palmares em 1999, tendo sido, portanto, reconhecida como patrimônio cultural brasileiro.[7]
Situação territorial
Esse reconhecimento desencadeou um processo de reafirmação identitária e territorial da comunidade, culminando na demarcação de mais de 11.700 hectares, somando atualmente 14.622 hectares identificados pelo Incra como área remanescente do quilombo.[1] Mata Cavalo é o maior quilombo do Mato Grosso.[8] Há seis comunidades: Aguaçu de Cima, Mata Cavalo de Cima, Ponte da Estiva (fazenda Ourinhos), Capim Verde (ou Mata Cavalo do Meio), Mutuca e Mata Cavalo de Baixo. Para a historiadora Maria dos Anjos dos Santos "as comunidades têm referência numa ancestralidade e estão entrelaçadas pelas relações de parentesco. [...] Encontramos pessoas que declaram pertencerem tanto a uma comunidade quanto à outra. Não há separação rígida nessas divisões e sim um sentimento de pertença com raízes no passado histórico que as precederam".[1] Em 2018 lá viviam cerca de 500 famílias.[9]
O reconhecimento das terras quilombolas reavivou os conflitos com os fazendeiros, que não apenas buscaram revertê-lo através do sistema judicial, mas também passaram à arbitrariedade e à violência, contando em alguns casos com o apoio de agentes policiais.[1] Diversos trechos do território continuam invadidos por fazendeiros. A titulação ocorreu em 2000, o processo de regularização fundiária foi iniciado em 2004, o relatório técnico para demarcação ficou pronto em 2006, e o decreto de desapropriação foi publicado em 2009, mas a titulação não foi registrada em cartório e a desintrusão não foi implementada completamente.[8][10][11] Em 2017 os fazendeiros conseguiram despejar diversas famílias por ordem judicial. A decisão depois foi revertida na segunda instância, mas suas casas e benfeitorias já haviam sido destruídas e os habitantes foram parar em barracas à beira da estrada.[8][12] Até 2023 as disputas ainda tramitavam na Justiça.[10] As ocupações irregulares causaram significativa degradação do meio ambiente local e as disputas pela terra envolvem também interesses sobre recursos hídricos e minerais e por produtos naturais.[13]
Tradições
Com o reconhecimento oficial e o fortalecimento do protagonismo da comunidade, Mata Cavalo foi integrada ao circuito turístico de Mato Grosso. Os visitantes podem conhecer e apreciar a culinária, as danças típicas como o siriri e o congo, a arte da pintura corporal em henna e outras tradições.[14] Segundo a Fundação Palmares, a comunidade tem se destacado pela sua produção de artesanato. Foi instalado um Ponto de Cultura certificado pelo Ministério da Cultura, onde os interessados podem aprender as técnicas tradicionais de criação e as formas de uso da palha do coqueiro.[9]
A "educação quilombola" tem sido uma das prioridades da comunidade. A educação formal padrão é apoiada por possibilitar a inserção dos jovens no mundo do trabalho e facilitar sua integração na sociedade, mas há a preocupação de oferecer conteúdos adicionais como um contraponto, conteúdos que enfatizam o fortalecimento da identidade comunitária e a autovalorização da condição de negros, oferecem meios de combater o preconceito, cultivam as memórias e práticas tradicionais e procuram desenvolver nos estudantes a consciência sobre os aspectos políticos da causa quilombola. Entre as disciplinas extra-curriculares oferecidas na escola da comunidade estão Prática da Cultura de Arte Quilombola, Prática Agrícola Quilombola e Prática de Tecnologia Social.[15]
Há mais de dez anos a comunidade de Mutuca realiza a Festa da Banana Quilombola, que homenageia o principal ingrediente de diversos pratos típicos da comunidade. A festa busca também resgatar as tradições e a cultura negras do local. O evento inclui almoço aberto ao público, atrações artísticas e musicais e uma feira de artesanato e produtos locais como licores e doces.[16]
O documentário Vivenciando a cultura do Quilombo Mata Cavalo trata da história de resistência dessa comunidade e foi escolhido como parte do projeto Revelando os Brasis em 2018.[17] No mesmo ano a comunidade foi o local escolhido para o encerramento do Projeto Aí Dança quem Dança, quem não Dança Venha Ver, contemplado pelo edital Circula MT, da Secretaria de Estado de Cultura de Mato Grosso, trazendo apresentações culturais e oficinas. O projeto teve o objetivo de proporcionar acesso gratuito a bens culturais tradicionais em regiões com pouca ou nenhuma oferta cultural. A celebração também homenageou Antônio Benedito da Conceição, mais conhecido como Antônio Mulato, natural de Mata Cavalo, morto em outubro com 113 anos, considerado o quilombola mais velho do Brasil.[18]
Mata Cavalo tem sido objeto de pesquisas acadêmicas, que buscam traçar a história da comunidade e evidenciar os desafios pelos quais tem passado, ao mesmo tempo enfocando suas tradições, sua cultura, suas redes familiares e outros aspectos.[19][20] Duas dissertações de mestrado já foram produzidas por membros da própria comunidade e desde 2006 o Grupo Pesquisador em Educação Ambiental, Comunicação e Arte desenvolve pesquisas no quilombo.[20] Segundo a pesquisadora Maria dos Anjos Lina dos Santos, "a memória teve um papel fundamental na construção da identidade do grupo e na conservação dos valores ancestrais, transmitidos de geração em geração através da educação informal, realizada através das festas tradicionais, na organização social e do trabalho, e em outras experiências vividas no cotidiano das famílias. A comunidade quilombola de Mata Cavalo é um dos grupos remanescentes de escravos em Mato Grosso que mais tem se esforçado na luta pela conservação de suas tradições e de suas terras, no embate contra fazendeiros e grileiros".[19]